Carniceiro dos Balcãs já não vai saber o que é a liberdade
"Eu sou o general Mladic. Eu defendi o meu país e o meu povo", declarou quando compareceu pela primeira vez perante o coletivo de juízes do Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia, em 2011. Seis anos volvidos, as suas últimas palavras proferidas em público poderão ter sido "É tudo mentira, vocês são todos mentirosos", minutos antes de o veredicto ter sido anunciado pelo juiz Alfons Orie, que ordenou que o sérvio fosse retirado da sala. O antigo militar de 74 anos, conhecido como o "carniceiro dos Balcãs", foi declarado culpado de dez das 11 acusações de que era alvo, incluindo o genocídio em Srebrenica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
Violações em massa de mulheres e jovens bósnias, maus-tratos aos milhares de prisioneiros dos campos de detenção, deportações em massa, destruição de casas e mesquitas e terrorismo praticado contra civis em Sarajevo foram os outros principais delitos da responsabilidade do homem que tentou fazer à força uma "Grande Sérvia" depurada de "ustase" (fascistas croatas) e de "turcos", como chamava aos croatas e aos bósnios.
"Os crimes cometidos classificam-se entre os mais hediondos conhecidos pela humanidade e incluem o genocídio e o extermínio", disse o juiz holandês durante a leitura do resumo do julgamento, que decorreu em Haia. Alfons Orie explicou que o estado débil de saúde do arguido - que levou aos sucessivos atrasos para a conclusão do processo - não serviu de atenuante, como os advogados de defesa requeriam. Os juízes não deram como provado que Ratko Mladic tenha sido responsável pelo crime de genocídio noutras localidades.
Fora do tribunal, juntaram-se sobreviventes, mães e familiares das vítimas do nacionalismo sérvio. Kelima Datovic, detida num campo em 1992, quando estava grávida e com uma filha de seis anos, classificou o comportamento de Mladic no tribunal como uma "atuação medíocre e patética". Outro sobrevivente dos campos de prisioneiros foi Fikret Alic, cuja imagem esquelética se tornou tristemente famosa. "A justiça prevaleceu e o criminoso de guerra foi condenado", resumiu, considerando o veredicto um "exemplo que irá prevenir crimes de guerra".
O dia foi seguido com especial atenção nos Balcãs. "Mladic vai morrer em Haia! Estou satisfeita com esta justiça", disse Nedziba Salhovic, que seguiu a transmissão televisiva em Donji Potocari, onde se situa o principal memorial do massacre de Srebrenica. "A justiça não seria feita nem que ele vivesse mil vezes e recebesse as mesmas sentenças", disse por seu turno Ajsa Umirovic, que perdeu 42 familiares.
Mas muitos continuam a ver como um herói o homem que um dia disse que "as fronteiras sempre foram desenhadas com sangue e os Estados demarcados por túmulos". Na Sérvia, o canal de TV Pink descreveu a sentença de "vergonhosa" e anti-sérvia. Na Bósnia, o líder sérvio, Milorad Dodik, disse que o tribunal das Nações Unidas foi criado "com o propósito" de demonizar os sérvios e disse que Mladic é um "herói e patriota".
O "carniceiro dos Balcãs" é considerado um dos três responsáveis pela limpeza étnica durante a guerra na Jugoslávia, que contabilizou mais de 100 mil mortos e 2,2 milhões de deslocados. A sua filha Ana suicidou-se em 1994 - devido às ações do pai, apontam os críticos do militar.
Os outros foram o presidente sérvio Slobodan Milosevic, que morreu na prisão em 2006, aos 64 anos, e o psiquiatra Radovan Karadzic, de 72 anos, ideólogo dos sérvios da Bósnia e primeiro presidente da República Sérvia da Bósnia. Condenado em 2016 a 40 anos de prisão, é adversário de Mladic nas partidas de xadrez na prisão de Scheveningen.
Cronologia
12 de março de 1943
› Ratko Mladic nasce na aldeia de Bozanovici, no Estado Independente da Croácia (atual Bósnia e Herzegovina). O pai, um partisan que lutava contra o regime fascista, foi morto quando tinha dois anos.
1961
› Ruma a Zemun, Belgrado, e ingressa na escola militar até ser incorporado no exército, em 1965.
1991
› Na guerra da Croácia é destacado para Knin, onde se denomina "defensor dos sérvios de Krajina", uma república sem reconhecimento internacional. Foi promovido a general.
1992
› Após a proclamação da independência da Bósnia, vai comandar as forças sérvias em Sarajevo, à qual impõe um cerco de 44 meses: corte de água e luz, bombardeamentos e terror diário praticado por franco-atiradores resultaram na morte de mais de dez mil pessoas.
Julho de 1995
› Antes dos Acordos de Dayton, que impõem o cessar-fogo, Mladic dirige-se ao enclave muçulmano de Srebrenica, a 80 quilómetros de Sarajevo. Domina o destacamento holandês de capacetes azuis, reúne a população masculina (a partir dos 12 anos) e dá ordens para a execução do maior massacre na Europa desde a II Guerra Mundial: cerca de 8 mil mortos.
25 de julho de 1995
› A par do líder político Radovan Karadzic, é acusado pelo Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Com o fim do conflito militar, ambos se refugiam na Sérvia de Slobodan Milosevic.
26 de maio de 2011
› Ao fim de 16 anos, Mladic é preso numa casa de campo de um familiar no norte da Sérvia.
16 de maio de 2012
› Dá-se início ao julgamento. Mladic declara as acusações de que é alvo como "repugnantes e monstruosas" e declarou-se inocente.
22 de novembro 2017
› Mladic é condenado a prisão perpétua.