Carne
Vejo passar o Galão, a caminho das suas bezerras, e respiro fundo. Aquele homem não sabe, mas uma parte do país está há dias a chamar-lhe criminoso.
Desde que a Organização Mundial de Saúde anunciou aquilo que até já sabíamos - que as chamadas carnes vermelhas fazem mal e dão cancro -, gente de todo o lado vem-nos condenando aos dois, a ele e a mim. Eu como: sou cúmplice e sou estúpido. Ele mata-me a mim e ainda mata animais: é duplo homicida.
O debate anda aí (ainda anda?), nas televisões e nas rádios, nos fóruns ultrademocráticos e no Facebook. E, como de costume, nem uma só alma perde a oportunidade de moralizar.
Durante muitos anos, a minha tese foi a da orfandade. A morte de Deus deixara demasiada gente desalojada, abrindo ao mesmo tempo interessantes perspectivas à literatura de auto-ajuda, aos oradores motivacionais (sic) e aos curandeiros em geral. O mercado é assim mesmo.
Sem dramas, note-se: tudo se resumia aos mais básicos rituais de pertença e de exclusão. Não é à toa que o moralismo e o cinismo se tornaram os dois grandes modos de viver a vida urbana: foram sempre o espelho um do outro. Eu pertenço e tu não, diz o moralismo; tu pertences, mas eu não, responde o cinismo.
Isto foi o que achei durante anos. Agora vivo longe e vejo melhor as coisas: acho que as pessoas precisam sobretudo de se entreter um bocadinho. Na cidade como no campo. O que são a mexeriquice entre vizinhas e a maldade do padre senão exclusão e pertença também?
Ou isso, ou deixámos de saber comover-nos. E a tal ponto que de bom grado verteremos lágrimas por uma salsicha, se isso resolver.
Eu ainda me comovo. Carne, como cada vez menos. Mas, quando vejo o Galão passar a caminho das suas bezerras, noite escura ainda, um frio cortante em redor, ainda me comovo.
Talvez seja a solidariedade entre assassinos.