Carnaval canibal

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Todos ganharam, só o País continua a perder. O que se passou na última semana em Portugal não foi apenas mais um momento da crise, foi um momento de apogeu do vazio político-mediático que cada vez mais nos asfixia a todos.

Pelo lado da política, este apogeu impôs-se a partir da demissão de Vítor Gaspar, que surgiu acompanhada de uma confissão tão inequívoca do seu fracasso, que num minuto tornou evidentes todos os erros de conceção (mas também de concretização) da estratégia do memorando e da sua tutela pela troika. E ele cresceu depois com a teatral demissão de Paulo Portas, num lance de inopinado bonapartismo que ninguém percebeu, nem o próprio, de tão entregue que estava à sua despeitada húbris.

Pelo lado mediático, este apogeu traduziu-se na irrupção de uma histeria contagiante em todo o comentarismo nacional. Um comentarismo sempre tão ruminante, em que cada vez mais todos parecem apenas mascar as palavras uns dos outros, entrou de repente numa espiral de disparates e de palpites sem fim. A histeria apareceu como o contraponto do suspense que, como ensinou Hitchcock, se constrói dilatando o presente entre duas possibilidades contrárias de um futuro iminente.

É muito instrutivo - e também muito divertido, experimentem!... - passar agora em revista o que os comentadores, praticamente todos, disseram nas horas que se seguiram à extravagante sucessão das demissões de Vítor Gaspar e de Paulo Portas, como se estivessem possuídos por uma mesma ebulição sistémica.

O que se passou foi , é claro, grave. Mas não foi, ao contrário do que se repetiu mil vezes, caso "único", nem "inédito" e muito menos "impensável". Só um parolismo nacional que confunde a sua pequena janela com o mundo que não conhece é que podia entregar--se tão alegremente aos dislates que se ouviram nestes dias.

Porque, infelizmente, a verdade é que hoje em dia se veem muitos acontecimentos do mesmo género por todo o lado: basta olhar um pouco para o que no último ano aconteceu, por exemplo, nas políticas italiana, espanhola, americana, inglesa, grega, francesa belga, etc.

O truque é banal: qualifica-se como absolutamente raro o que é relativamente comum, para assim se hipervalorizar um olhar que, afinal, pouco percebe do que vê. E o que é relativamente comum decorre em boa parte de transformações civilizacionais que têm mudado completamente a condição política nas últimas décadas, em consequência da revolução ultraliberal.

Foram o financismo e o tecnologismo que, tendo por ativo pano de fundo uma globalização e um individualismo galopantes, conduziram à crescente destituição da política. Na Europa, este processo acentuou-se ainda mais com a perda de soberania dos Estados (que nos países "sob resgate" é quase total), conduzindo todos estes fatores ao que Wendy Brown chamou a des-democratização das sociedades contemporâneas.

Este processo, que é o de uma acelerada desvitalização da democracia, reduzida a formalidades cada vez mais irrelevantes, decorre da fusão do espaço político e do espaço mediático, que na verdade se tornaram coprodutores de eventos, dando assim origem a uma espécie de campo magnético que procura constantemente captar a atenção dos cidadãos e manipular a sua opinião.

É neste campo, que é uma criação inédita da cultura ultraliberal, que a condição política corre hoje o risco de desaparecer, vítima de uma superexposição mediática que, bajulando astuciosamente o seu narcisismo, faz dela o indefeso bode expiatório de todos os impasses contemporâneos.

É para esta espécie de carnaval canibal que tendem hoje as sociedades que, há cerca de quarenta anos, se transformaram em sociedades do espetáculo, com a condição política a oscilar cada vez mais entre ser um mero produto de consumo, tornar-se personagem de reality show ou abandonar-se às contingências da cultura de massas.

É neste quadro que, como comecei por sugerir, se pode dizer que todos ganharam e que só o País continua a perder. O Presidente da República ganhou porque conseguiu finalmente surpreender o País, infelizmente tarde demais, refém da sua visão limitada e ziguezagueante da crise que o País e a Europa enfrentam.

Pedro Passos Coelho ganhou porque, com apática serenidade, resistiu às múltiplas certidões de óbito que lhe foram passadas a seguir às demissões de Vítor Gaspar e de Paulo Portas. O "novo ciclo" não será, contudo, nada daquilo que ele esperava...

Paulo Portas ganhou porque aprendeu há muito tempo que assumir todas as contradições é, em ambiente de crise, o melhor carburante da sobrevivência e que a performance rende hoje muito mais do que as narratretas. Ele representa como ninguém a fusão político-mediática do carnaval canibal a que assistimos. E tornou-se agora o foco, provavelmente incandescente, do que resta desta maioria e desta legislatura.

António José Seguro ganhou porque não teve de fazer nada, a não ser manter como seu um objetivo para que todos convergem, independentemente do ritmo dos acontecimentos. O grande desafio, agora, é saber com que alternativa ele vai apresentar-se ao Presidente e aos portugueses.

O PCP e o Bloco de Esquerda ganharam porque, de certo modo, eles nunca perdem: as suas posições são sempre, como se sabe, uma hábil dramatização antecipada dos acontecimentos, elaborada de tal modo que o tempo tem sempre de lhes dar (alguma) razão.

O País é que continua a perder porque, quando precisava - em termos nacionais e europeus - de uma visão estratégica de verdadeiro fôlego, ficou agora ainda mais refém daquilo que Michel Foucault definiu um dia como o grotesco em política. E esse grotesco é aquilo que se revela quando "a maximização dos efeitos de poder acontece a partir da desqualificação de quem os produz"- que é, note-se bem, exatamente o que se tem estado a passar.

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