Carlucci, o conspirador anti-Moscovo

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Frank Carlucci morreu em casa aos 87 anos, nos Estados Unidos, depois de ter cumprido longa carreira diplomática e política, com especial destaque na dependência de Kissinger, no período em que o governo americano lhe conferiu a missão de evitar que Portugal se transformasse num estado comunista na periferia ocidental do continente europeu. Quem viveu essa época como jornalista e militante político de esquerda, como foi o meu caso, não esquece o que Carlucci representava e o modo como patrocinou toda a dinâmica conspirativa que visava neutralizar o PCP e os sectores mais revolucionários do MFA.

Fui enviado como jornalista do DN a Varsóvia e Moscovo com o Presidente Costa Gomes nos primeiros dias de Outubro de 1975, naquela que foi a sua primeira visita de Estado e que coincidiu com um período de particular turbulência política em Lisboa, com Otelo e o Copcon como elementos centrais dessa movimentação. O Palácio Foz foi ocupado e, tanto em Varsóvia como em Moscovo, não havia a certeza de que a viagem poderia concluir-se. Os oficiais do MFA que acompanhavam o Presidente muito reflectiram e analisaram nesses breves dias os vários cenários políticos e militares.

Em Moscovo, onde Costa Gomes se reuniu com Leonid Brejnev, que recebeu elementos da comitiva no seu gabinete, o essencial era saber se os soviéticos apoiavam Portugal ou se não estavam disponíveis para enfrentar os EUA por esta questão política e militar que também envolvia todo o processo de descolonização das ex-colónias portuguesas.

Mesmo no seio da comitiva presidencial o ambiente era tenso porque ninguém sabia o que iria acontecer em Portugal nesse momento e nos meses seguintes, estando já todos tão próximos do 25 de Novembro e na dramática iminência de uma guerra civil que só bom senso, moderação e apurado sentido político de alguns conseguiria evitar, de Costa Gomes a Cunhal, passando por Ernesto Melo Antunes e mais alguns.

Alguns jornalistas que, como eu, cobriram essa viagem, já nos deixaram. Recordo, entre outros, Joaquim Benite, o encenador do Grupo de Campolide, então redactor do Diário de Lisboa.

Em Lisboa, dialogando com Mário Soares e com outros políticos e militares que se opunham ao desfecho revolucionário, Carlucci, que representava os EUA e a acção da CIA, não parava.

Brejnev recebeu-nos no seu gabinete. Tinha evidentes problemas respiratórios e um amplo sorriso que os fotógrafos não deixaram escapar. Apontou Portugal no mapa, embora o dedo se dirigisse mais para a zona de Valência do que para Lisboa e disse com simpatia o nome de Cunhal, para que todos o pudessem ouvir.

Porém, nada nessa viagem apontou no sentido de que os soviéticos estivessem dispostos a desequilibrar o barco a favor de Moscovo, numa altura em que nas águas portuguesas havia a presença de importantes unidades das duas potências. Aquilo que os jornalistas então puderam apurar, sem conferências de imprensa nem outros formais actos de comunicação, é que os soviéticos não queriam entrar em rota de colisão militar e política por causa de Portugal.

Carlucci, segundo parece, tinha essa convicção e conspirava nesse sentido, apoiando quem entendia que devia, com uma percepção diferente da de Kissinger, que acreditava na quase inevitabilidade da sovietização de Portugal.

Esse foi um tempo de incessantes boatos e rumores e, mesmo em Moscovo, havia versões muito contraditórias sobre o que se passava em Lisboa. Todos sabiam que um epílogo estava iminente, mas não sabiam qual, como e onde. Além de jornalista, eu era militante do PCP e tinha no DN o sector da Política Nacional e o acompanhamento do sector militar. Fui saneado do DN, com Saramago e outros, logo após o 25 de Novembro. Também por isso não esqueci essa viagem a Moscovo que nos permitiu visitar a geografia referencial da Revolução de Outubro. Portugal estava prestes a mudar e todos desejávamos perceber como. Faltavam muito poucas semanas.

Recordo-me de uma entrevista que Carlucci deu a Miguel Sousa Tavares na SIC e, apenas de memória, sei ter afirmado que a posição geográfica de Portugal, o peso da Igreja Católica e o conservadorismo da maioria da população não poderiam favorecer o triunfo dos interesses revolucionários. Depois Carlucci regressou a Portugal para tratar dos seus negócios e fundou com o jornalista Artur Albarran, revolucionário em 1975, uma empresa que entretanto terá falido.Carlucci, de pequena estatura e sotaque brasileiro que ganhou no Brasil, onde contribuiu para derrubar João Goulart, foi também líder da CIA e parece nunca ter esquecido o Portugal pró-ocidental que o encarregaram de controlar. Pedro Santana Lopes enquanto primeiro-ministro, condecorou-o com a Ordem do Infante D. Henrique.

Escritor, jornalista e Presidente da SPA

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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