Mozart dos tabuleiros e aspirante a Bobby Fischer lutam pelo trono
São as duas mentes mais brilhantes da atualidade diante dos tabuleiros de xadrez e preparam-se para uma batalha de génios sem tréguas pelo trono da modalidade.
A partir desta sexta-feira, 9 de novembro, a imponente sala de eventos londrina The College, uma antiga escola de artes e design, acolhe o momento mais esperado pelos amantes do xadrez a cada dois anos, a decisão do campeonato do mundo que vai colocar frente-a-frente o campeão em título, o norueguês Magnus Carlsen, e o desafiante norte-americano Fabiano Caruana.
Depois da grande importância, até política, que assumiu durante grande parte do século XX - sobretudo no período histórico da Guerra Fria, marcado por esse lendário confronto entre o russo Boris Spassky e o norte-americano Bobby Fischer em Reyqjavik (Islândia) -, e da era dourada de Garry Kasparov no final do século, o xadrez volta a atravessar uma vaga de popularidade crescente, impulsionada por uma nova geração de génios nascidos já no seio de uma sociedade digital global, onde o xadrez se difunde em múltiplos softwares e aplicações informáticas que aceleram o processo de aprendizagem.
Magnus Carlsen e Fabiano Caruana são dois exemplos desses. Os melhores, dizem os rankings atuais da modalidade. Jovens, bem sucedidos, cosmopolitas, são peças principais num tabuleiro (o xadrez) que reconquista um certa aura de vanguarda. Apesar de pertencerem à mesma geração, Carlsen, de 27 anos, e Caruana, de 26, representam também estilos completamente distintos.
O norueguês campeão do mundo é uma espécie de pop star da modalidade, o primeiro xadrezista de elite que manteve contratos de modelo para marcas de roupa como a G-Star Raw, que conseguiu atingir a fasquia de um milhão de dólares anuais em patrocínios, que foi eleito como um dos homens mais sexys do mundo pela revista Cosmopolitan. Um bad boy com um estilo de jogo agressivo e uma boa dose de mau-feitio e arrogância.
O norte-americano, nascido em Miami mas criado entre Brooklyn (Nova Iorque) e a Europa (Espanha, Itália...), é descrito como muito mais calmo, afável e ponderado, tanto na personalidade como no estilo de jogo. A antítese de Carlsen, o que reforça o interesse sobre a disputa de um título mundial que, "pela primeira vez desde 1990 reúne no mesmo tabuleiro os dois melhores jogadores do ranking nesta altura", como sublinha ao DN o mais jovem campeão português de sempre, André Sousa, que em 2017 ganhou o título nacional de xadrez com apenas 17 anos.
Naquele ano de 1990, entre os russos Gary Kasparov e Anatoly Karpov, também eles de estilos completamente antagónicos, "existiam 70 pontos de diferença no ranking". "Agora, só são três", acrescenta o jovem portuense (de Valongo), que não esconde a "grande expetativa" em relação ao duelo entre "dois jogadores fantásticos". Magnus Carlsen, o campeão em título e líder mundial, apresenta um ELO (o método estatístico usado para calcular o ranking dos jogadores de xadrez) de 2835, enquanto Fabiano Caruana, o aspirante, tem 2832.
Em jogo, além do título, está um prémio de um milhão de euros, 20% das receitas das transmissões pay-per-view para todo o mundo e uma fatia não discriminada dos proveitos de patrocínio do evento.
No confronto direto entre ambos, em partidas clássicas, Magnus Carlsen tem uma vantagem (como tem, de resto, contra todos os xadrezistas no ativo). O norueguês ganhou 10 partidas contra cinco apenas de Caruana e 18 empates. O norte-americano já não consegue derrotar Carlsen desde 2015, mas está num excelente momento de forma, o que lhe permitiu reduzir até quase à margem mínima a diferença entre ambos no ranking e alimentar a expetativa dos Estados Unidos em voltar a ter um campeão do mundo no xadrez, pela primeira vez desde o lendário Bobby Fischer (1972-75).
Essa perspetiva de poder devolver o título aos EUA tanto tempo depois do feito de uma das mais fascinantes e enigmáticas personagens da modalidade é uma pressão acrescida com que Caruana chega a Londres para a decisão mundial.
O norte-americano assume que Fischer "sempre foi uma enorme inspiração" para ele, mas põe travão nas semelhanças. "Alguns aspetos da sua vida pessoal que não eram os mais positivos, mas a abordagem dele ao xadrez e a sua força de vontade são inspiradoras. É bom ser comparado com ele num contexto histórico, mas em termos de personalidade e estilo de jogo somos muito distintos", disse Caruana ao The Guardian, na antecâmara deste campeonato do mundo.
Nascido em Miami, "Fabi", como é conhecido no meio do xadrez, passou a fase inicial da infância em Brooklyn, no mesmo bairro de Fischer. Iniciou-se nos tabuleiros aos 5 anos, para combater as dificuldades de concentração. Lembra-se de ter perdidos "todas as quatro partidas" do seu primeiro torneio, num início pouco auspicioso, mas rapidamente começou a destacar-se dos outros e a derrotar jogadores mais velhos.
Perante a perspetiva de terem em casa uma mente brilhante dos tabuleiros de xadrez, os pais de Caruana investiram tudo na carreira do filho desde tenra idade, mesmo contra os conselhos da maior referência da modalidade, o russo Garry Kasparov, que os avisou na altura para o risco de uma decisão tão definitiva numa idade tão precoce. Os Caruana, contudo, tinham a convicção absoluta de que esse era a única opção certa e, quando "Fabi" chegou aos 12 anos, tiraram-no da escola e mudaram-se com ele para a Europa, para Madrid (Espanha), em busca dos melhores professores de xadrez para que ele pudesse evoluir.
Filho de pais italo-americanos, Caruana começou a jogar por Itália em 2005 e em 2007 tornou-se o mais novo Grande Mestre (o mais alto grau do xadrez) dos dois países, Itália e EUA, com apenas 14 anos e 11 meses. Mas em 2015 regressou aos Estados Unidos, integrado numa forte aposta dos americanos em recuperar o trono mundial da modalidade, financiada pelo multimilionário Rex Sinquefield, que fez de St. Louis o mais famoso spot do xadrez atual. Pela mudança, Caruana terá recebido mais de 200 mil dólares, segundo algumas publicações especializadas.
Depois de, em 2016, ter ajudado os EUA a voltar a ganhar umas Olimpíadas do xadrez pela primeira vez desde a década de 1930 e, no mesmo ano, ter falhado por pouco a presença na disputa do título mundial, ao perder para o russo Sergey Karjakin a hipótese de desafiar Magnus Carlsen, Fabiano Caruana chegou agora ao palco mais apetecido, após vencer o Torneio de Candidatos no início do ano.
Para enfrentar este campeonato do mundo, Caruana, um aspirante a realizador de cinema que tem Quentin Tarantino, David Lynch e Guillerme del Toro como referências, entregou-se a um plano rigoroso de preparação que incluiu uma auto-proibição em relação a relacionamentos amorosos, com medo de que uma eventual desilusão pudesse afetar-lhe a concentração. De resto, além de horas diárias a estudar todos os movimentos possíveis no tabuleiro, complementou a preparação com atividades como o ténis, yoga ou ginásio, de forma a reforçar a sua resistência física e mental para enfrentar o mais exigente de todos os adversários.
Com um ELO máximo de carreira de 2844 - o terceiro maior de sempre no xadrez -, Caruana chega próximo do seu melhor (2832), após um ano em que somou bons resultados e cimentou o segundo lugar do ranking, aproximando-se como ninguém antes da liderança de Magnus Carlsen.
Tendo-se tornado o mais novo número 1 mundial de sempre em 2010, aos 19 anos, Carlsen é o principal responsável pela nova vaga de popularidade que o xadrez conheceu nos últimos anos. Longe do estereotipo de figura nerd dos tabuleiros que durante muito tempo esteve colada aos principais praticantes, o norueguês assumiu-se desde bem cedo como um prodígio capaz de redefinir a paisagem da modalidade.
Capaz de resolver puzzles com mais de 50 peças logo aos dois anos de idade, Carlsen, nascido na pequena cidade costeira de Tonsberg, a sul de Oslo, começou a praticar xadrez também aos cinco anos, tal como Caruana - "para se chegar a este nível de topo mundial tem de se começar a jogar muito cedo", constata o português André Sousa, também ele em volta dos tabuleiros desde os cinco anos. "Mas só aos oito comecei a levar o xadrez a sério, antes disso não gostava", disse o campeão do mundo numa entrevista.
A progressão foi um relâmpago. Cinco meses depois do 13.º aniversário, Magnus Carlsen era já um Grande Mestre do xadrez. No mês anterior a obter a mais alta norma, o norueguês captou o olhar espantado da modalidade quando derrotou o antigo campeão do mundo Anatoly Karpov e empatou com o então líder do ranking Garry Kasparov, num torneio em Reykjavyk. Foi também por essa altura que ganhou a alcunha de "Mozart do xadrez", atribuída por um jornalista do Washington Post que lhe vaticinou a genialidade ímpar, como a do compositor austríaco do séc. XVIII.
Aos 19, tomou de assalto o trono do ranking, onde se mantém imutável há mais de oito anos. Aos 23, sagrou-se pela primeira vez campeão do mundo, derrotando o indiano Anand, em 2013. E pelo caminho bateu também o recorde do ELO mais alto da história do xadrez, que Kasparov manteve durante 13 anos, ao superar os 2,851 pontos atingidos pelo russo - Carlsen chegou aos 2,882 em 2014.
Isto enquanto a sua personalidade extrovertida e atividade social intensa contribuíam para aumentar a sua popularidade fora das fronteiras da modalidade, que aproveitou a boleia. O xadrez ganhou o mais parecido possível com um ídolo global, um Cristiano Ronaldo dos tabuleiros. "Carlsen conseguiu afastar um estigma associado a este desporto. Não é um génio com ar de nerd nem é mais um xadrezista russo", sintetiza Ilya Merenzon, o CEO da World Chess, que organiza o campeonato do mundo.
Por vezes, essa figura confiante resvala para uma certa arrogância, conferindo a Carlsen ar de bad boy que reforça o mediatismo em seu redor. Como aconteceu no último duelo direto com Caruana, na Sinquefield Cup, em St. Louis, quando o norueguês aproveitou o que parecia uma vantagem decisiva sobre o norte-americano para ir até ao confessionário [uma das introduções recentes na modalidade, que permite aos jogadores irem até uma sala fechada, durante as partidas, partilhar desabafos e pensamentos com o mundo exterior através de uma câmara] e fazer um gesto de "shhh" com o dedo à frente da boca, num recado para os críticos que lhe apontam um certo desleixo nos últimos tempos. Habitual no futebol, inusitado no xadrez.
É essa faceta da personalidade de Magnus Carlsen que faz com que o português André Sousa revele "alguma preferência" por Caruana neste duelo pelo título. "O Carlsen por vezes é um bocado arrogante. Acho que a fama subiu-lhe um bocado à cabeça", aponta o portuense, de 18 anos, a cursar o segundo ano de engenharia eletrotécnica na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.
No entanto, o campeão nacional de 2017 admite que "do ponto de vista estratégico, Carlsen costuma ser melhor do que Caruana". O norueguês tem fama de ser um génio mais imprevisível e um temível finalizador, enquanto o norte-americano é elogiado pela sua grande capacidade de cálculo.
"O Carlsen sempre teve fama de ser um grande finalizador, de forçar pequenas vantagens até final, mesmo quando elas não parecem existir. Mas agora já não é tanto assim. Os outros também já aprenderam", diz André Sousa, para quem o norueguês é, sim, mais criativo: "Tem aberturas mais complexas, que por vezes parecem esquisitas até mas depois acabam por permitir mais jogo. O Caruana joga aberturas mais convencionais, mais by the book."
Ainda assim, o xadrezista luso lembra que Caruana "está num excelente momento de forma e teve um ano melhor" do que Carlsen. Mas o norueguês terá vantagem caso a decisão, à melhor de 12 partidas até 28 de novembro (sagra-se vencedor quem chegar primeiro aos 6 pontos e meio), chegue ao desempate através de partidas rápidas. "O Caruana é mais fraco aí".
A partir desta sexta-feira se saberá se Magnus Carlsen prossegue o seu reinado como campeão do mundo ou se Fabiano Caruana consegue fazer xeque-mate ao rei.