CARLOS TÊ: «Queria ser guitarrista de rock para engatar as miúdas»
O letrista que esteve na origem do rock português dos anos oitenta apresenta esta noite, no Centro Cultural de Belém, um programa com «Carta Branca». Terá o formato de um desfile de cumplicidades artísticas, fruto de um percurso de trinta anos que deu origem a canções de antologia como Não Há Estrelas no Céu ou Porto Sentido. Para as interpretar, Carlos Tê convidou os Clã, Cristina Branco e, como não podia deixar de ser, Rui Veloso. Uma conversa a partir do imaginário das letras.Comecemos pel"A Origem do Mal, tema no topo da popularidade das suas criações.A Origem do Mal é um tema bíblico, de meados dos anos oitenta. Foi a minha veia satírica a palpitar, mas não me lembro ao certo da origem. Sei que o melão («provou-lhe que no melão estava a origem do mal») está ali por ser um elemento subversivo. Sou do signo Gémeos e isso dá-me uma certa dualidade. Ando sempre entre o sério e o satírico, entre o contar histórias da vida como ela é e usar o non-sense. Para escrever, seja o que for, tem de haver um clique. Por exemplo, nesse tema foi a questão do mal que me deu o instinto.Como é que o cantor Marco Paulo foi ali parar?Nesse tempo ainda havia concertos nos jardins do Palácio de Cristal. Faziam-se sardinhadas e coisas assim, e era possível imaginar o Marco Paulo em acção. Já o meu pai lá tinha ido ver o António Calvário, nos anos sessenta.Relendo-se a esta distância, acha que mudou a sua ideia de amor?A Eva está muito mais livre e emancipada. Também já lá vão 25 anos [risos].O Arménio, o trolha da Areosa, é de carne e osso?Não, é um paradigma. Esse tema, do álbum Mingos & Os Samurais, é uma alusão ao fantasma comum de todos os jovens da minha geração, que era a Guerra Colonial. Tem a particularidade de ser o único tema escrito no feminino. Inspirei-me nas coisas que o Chico Buarque fazia. A Areosa é um subúrbio do Porto, perto de Rio Tinto, Valongo. Nesta altura estava interessado em que estas personagens fossem o mais chãs possível. Mingos & Os Samurais contava uma história de gente sem história, e a Areosa era um bom local para esses achados. Impressionava-me isso na música brasileira e na anglo-saxónica, que era o facto de contar histórias de gente comum, uma música sem complexos que fazia uma ligação directa ao que estava à volta. Achei que podia fazer isso. O trabalho do Mingos foi sendo feito entre 1982 e 1989 e gravou-se apenas em 1990. Não sei dizer quando escrevi o Arménio (Um Trolha d"Areosa), mas lembro-me bem do clique, daquela coisa dos que ficam a chorar os que vão para a guerra. Falava também de uma obsessão muito clássica no Porto dos anos sessenta, que era ir um dia a Lisboa. Tratava-se de uma aventura percorrer aquela estrada ou até ir de comboio. Prometer a uma namorada que a levava a Lisboa era uma coisa. Eu próprio, nos anos sessenta, devo ter vindo aqui uma vez.O Bairro do Oriente é uma espécie de bairro do amor como o de Jorge Palma?É um tema escrito em 1979. Faz parte das minhas primeiras tentativas de fazer coisas em português. Não me lembro como cheguei lá mas sei que saiu à primeira. Há outra vez uma tentativa de misturar a linguagem da poesia com as vozes do bairro. É dos meus temas preferidos e muitas vezes me pergunto como consegui escrever isto em 79. Nunca tinha ido a Marrocos, não sabia ainda nada de nada do amor [risos].Tinha lido o Kamasutra?Nem o Kamasutra tinha lido ou sabia sequer se havia orquídeas na Etiópia. É muito difícil ir à génese disto. É como explicar a vida. Não se explica.Houve uma musa ou um astrolábio oferecido por um beduíno?Musa se calhar houve. Astrolábio não. A letra transmite um pouco o espírito do tempo. Só tinham passado cinco anos do 25 de Abril, estava tudo ainda a ser equacionado. Eu próprio ainda andava a tentar perceber os mecanismos da escrita em português. Nem sequer sabia se ia gravar um disco, o que ia sair, como ia lidar com os ridículos...Do Meu Vagar, um tema menos trauteado, é das suas criações mais contundentes. Foi a sua maneira de criticar o regime?Esse tema é de 1998, do álbum Avenidas. Tem que ver com a mudança que se começou a sentir na sociedade portuguesa que é o tempo do fast food. Era um manifesto contra a velocidade, o atropelo. Há aqui uma citação de Proust que não é metida a martelo mas tem que ver com saber olhar para trás. É também quando a alta cultura e o popular se começam a misturar na minha escrita com assiduidade. Não acho que em Portugal as culturas se misturem, ao contrário do Brasil ou Inglaterra, onde faz parte escrever sobre coisas banais com os rigores poéticos. Faz parte do leque dos países provincianos evitar-se os cruzamentos de sangues. O fado foi a única área da música portuguesa que teve o privilégio de ser visitado por grandes poetas como Alexandre O"Neill, Ary dos Santos, Vasco Graça Moura, o próprio Saramago escreveu para a Mísia, até eu... Talvez tenha acontecido por ser uma música de natureza urbana, logo mais disponível para ser estudada e entendida. Os outros departamentos da música popular são olhados de viés pelos poetas estabelecidos. Não percebo o porquê, mas continua a acontecer.Há quem chame ao Jura um caso de psicanálise romântica.É uma análise a ferro frio da dor de corno. Isto foi escrito para aí em 1982, para o Festival da Canção, e foi cantado pela Né Ladeiras. Depois ficou a marinar. Esteve para ser gravado em 1986, num álbum que tinha o Porto Sentido. Só foi gravado em 1998, com um belíssimo arranjo do Jacques Morelenbaum, na voz do Rui Veloso. É uma tentativa de perceber as coisas que valem a pena, a solidão de alguém que está longe e tem uma aventura, e que em 1982 era um belíssimo exercício de estilo.Lado Lunar é das suas letras mais orelhudas. Tem ideia de como é que isto saiu para o papel?Acho que se deve dizer antes que é das letras mais obscuras que escrevi (data de 1995). Passa a ideia de que «não me tentes enganar e mostra-me mas é como é o teu mundo». Em vez de descobrir daqui a seis ou sete anos que por detrás de um belo sorriso está uma pessoa dispensável, mais vale dizer já quem és e ao que vens. A protagonista não era ninguém de que me lembre. É uma experiência de vida que é mais comum ser abordada pela literatura e não pelas canções. Este meu compromisso, chamemos-lhe assim, embora não simpatize muito com a palavra, tem muito que ver com as minhas influências, sobretudo os brasileiros, como o Chico Buarque, e antes dele o Noel Rosa, que influenciou o próprio Chico. Ainda outro dia estava a ouvir o Três Apitos, que é um tema que eu revejo na minha infância de escritor de letras para canções. Na linguagem, Portugal já esteve muito mais perto do Brasil do que está hoje. Nos anos cinquenta, por exemplo, no modo de cantar, no universo, antes de a Globo ter tomado conta das coisas e de ter torcido o sotaque afastando-o claramente dos portugueses. Quando havia um Tristão da Silva, uma Amália, a irem ao Brasil sem problemas. O Brasil apareceu com a bossa-nova, o tropicalismo, enquanto Portugal se mantinha fechado atrás das cortinas.Não Há Estrelas no Céu pode ser lido como uma letra da iniciação à idade adulta?Faz parte do Mingos & Os Samurais. Fala das dores de crescimento da adolescência, que são universais, e da importância que o rock teve nessa fase das queixas contra a escola, a sociedade. O rock era uma espécie de postigo libertador por onde as pessoas se escapavam. Hoje as coisas estão mais fragmentadas. Há blogues e facebooks para mandar bocas. As pessoas não precisam das canções para se queixarem, embora as canções sempre tenham tido uma tradição muito confessional. Desde os blues ao samba de boteco, não faltam exemplos. Uma espécie de catarse, do género ao pôr lá o que sinto estou a aliviar o organismo. Este Carlos era o Carlos que havia em todos os meus amigos. A adolescência é um período tramado, em que se está entalado entre aquilo que querem que a gente seja e aquilo que se quer ser. Às vezes estou a dizer coisas aos meus filhos e a achar-me um troglodita. Esta canção é um bocado sobre isso.Há uma grande curiosidade sobre as ousadias d"O Prometido é Devido («disseste que se eu fosse audaz tu tiravas o vestido...»). Quem era o par romântico?É um tema também do Mingos. Para mim é um louvor aqueles jogos de amor enternecidos. Mostras-me isto eu dou-te aquilo, tanto podia ser uma meia, um sapato ou um vestido. São jogos estivais de iniciação onde se aprende de tudo e que tocam a todos [risos].O Que Quero Ser Quando For Grande: o que queria ser que não esteja na letra?Tudo menos «atolambado». Era uma palavra que se usava muito no Porto e que vem de tolo. O rapaz, em vez de querer ser um humilde rapaz dos correios, quer ser saltimbanco. Querer ser este marinheiro é querer ser um Corto Maltese, um marinheiro corajoso e universal. As pessoas sonhavam dentro dos seus limites que era ter um emprego melhor. Eu não me lembro de um sonho maior do que ser guitarrista de rock, para engatar as miúdas. Ser escritor não dava direito a isso.A Paixão e o famoso anel de rubi do Rivoli. Quem era a aquela que mais queria para lhe dar algum conforto e companhia?Aqui temos mais uma vez a desilusão como grande combinação do real, que neste caso é imaginário. Nasceu de uma espécie de conclusão (que nunca percebi muito bem) de que o amor infeliz é muito mais duradouro. É uma alusão aos primeiros concertos de rock que vi. Elkie Brooks, If, Beggars Opera, coisas assim. Estas personagens ainda fazem parte do arco narrativo do Mingos. Acho extraordinário quando as personagens encarnam um imaginário e se tornam hinos. Ter-me acontecido isto foi igualmente extraordinário.Porto Sentido é a sua única declaração de amor a uma cidade?Foi a primeira vez e única que tentei escrever-lhe. Comecei por fazer a letra e achei que estava tão bom que fui-a refazendo palavra a palavra. Foi escrito a partir de um sentimento, uma perspectiva. Escrever sobre lugares era uma coisa que conhecia dos fados e odiava. Mas na própria música pop havia disto. No disco Helpless, do Neil Young, ele cantava sobre uma cidade em Ontário, no Canadá («There is a town in north Ontario/With dream confort memory to spare/And in my mind I still need a place to go/All my changes were there»). Acho que no fundo há sempre necessidade de cantar as raízes.E quem foi a musa bucólica de Sei de Uma Camponesa?É um tema do primeiro disco. Nunca me dei com camponesas [risos]. Essa ideia criativa transparece em muitas das coisas que escrevi, ou seja, a ligação por interposta pessoa, a minha avó neste caso. Foi a minha avó que me ligou a uma ruralidade que eu desconhecia. Achava espantoso, por exemplo, a minha avó pôr-se a falar com as plantas.Um homem de palavrasCarlos Alberto Gomes Monteiro, mais conhecido por Carlos Tê, nasceu há 56 anos na Rua da Saudade, no bairro portuense de Cedofeita. Licenciou-se em Filosofia na Universidade do Porto e deu nas vistas como letrista logo no primeiro álbum de Rui Veloso, Ar de Rock, em 1980. Além da ligação estreita à carreira de Rui Veloso, escreveu letras para bandas como os Clã, Trovante ou Jafumega. Enquanto cantautor tem uma experiência solitária no álbum Voz e Guitarra (1997). Foi o autor da ideia e das letras do musical Cabeças no Ar, em 2007. Colaborou em revistas de poesia e em vários jornais. É autor do romance O Voo Melancólico do Melro e de Contos Supranumerários.Letras escolhidasA Origem do Mal http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146635/Arménio (Um Trolha d'Areosa) http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146634/Bairro do Oriente http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146633/Do Meu Vagar http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146632/Fado do Ladrão Enamorado http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146629/Jura http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146631/Lado Lunar http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146630/Não Há Estrelas no Céu http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146627/O Prometido É Devido http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146626/O Que Eu Quero Ser Quando For Grande http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146625/Paixão http://letras.terra.com.br/carlos-te/1145945/Porto Côvo http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146624/Porto Sentido http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146623/Sei de Uma Camponesa http://letras.terra.com.br/carlos-te/1146622/