Carlos Lucas: O enólogo que não sabe estar parado

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Estava tudo combinado. O enólogo, e também empresário, Carlos Lucas viajava de avião para Lisboa de manhã cedo, eu iria esperá-lo ao Aeródromo de Cascais e passados uns minutos estaríamos num hotel com vista para o mar a tomar um brunch e a falar do seu percurso para estas páginas. Só que a meteorologia fez das suas. Logo muito cedo surgiram os avisos atempados por SMS do atraso do voo que perspetivaram que o brunch se tornasse em almoço. Mas nem isso. O tempo piorou o avião não descolou e a conversa não aconteceu.

Dias depois, respeitando a hora brunchiana (pelas 10.00) conversámos então pelo ecrã do computador. Eu com um café de máquina em copo de vidro - manias que a idade vai trazendo - e o engenheiro Carlos Lucas já com o seu pequeno-almoço tomado. Perguntei-lhe o que tinha sido, para que a conversa fosse mais fiel a esta rubrica. Tal como noutros dias, acordara às 05.45 e tomou o seu pequeno-almoço habitual: duas torradas, um iogurte, sumo das suas laranjas espremidas na altura e um café acompanhado de notícias. Confessa-se "sedento de notícias", por isso no rádio do carro "a TSF está sempre sintonizada" e ao longo do dia de trabalho faz "diversas pausas para consultar os jornais online". Acrescenta que, se calhar, "é por estar longe, no campo".

Destaquedestaque"Iremos crescer por conta dos projetos que temos no Douro ligados ao enoturismo. Vou apostar nessa área."

O campo de Carlos Lucas, e pelo qual é apaixonado, é na Quinta do Ribeiro Santo, em Carregal do Sal, perto de Viseu. É lá que tem a sede da sua Magnum Vinhos, a empresa criada em setembro de 2011 e que hoje não só exporta para 24 países - com especial incidência no norte da Europa - como tem projetos em várias zonas vitivinícolas portuguesas. Do Dão à Região de Lisboa, passando pelos vinhos verdes, Alentejo, Douro e Porto. E uma novidade em primeira mão, segundo o enólogo: "Vamos fazer vinhos no Algarve".

Mesmo pelo ecrã percebe-se que Carlos Lucas não gosta de estar parado - acrescento: não sabe estar parado. Pergunto de onde vem tanta energia? "Durmo muito bem. Toda a gente me inveja", confessa a sorrir. E, de imediato, recorda a história de um voo para Nova Iorque com o chef Hélio Loureiro para um evento que iam fazer em conjunto. "Tínhamos combinado falar sobre o nosso jantar vínico durante o voo. Só que no meio da azáfama diária de ambos, o chef atrasa-se e é o último a entrar no avião já com toda a gente sentada. Nessa altura já eu estava a dormir. Aliás, dormi o voo inteiro. Quando acordei percebi que ele até tinha trocado de lugar para vir falar comigo e eu não acordei... e ainda ficou umas horas chateado por isso", conta divertido. "Posso ter muitas preocupações, as normais da vida empresarial, mas chego à cama e durmo muito bem".

É um homem pragmático. Como nunca sabe como vai correr o seu dia, anda sempre com um saco preto no carro com muito calçado e várias camisas. "Nunca sei se vou estar com o presidente da Câmara de Viseu, se vou visitar uma obra com um arquiteto ou receber alguém aqui na quinta".

Destaquedestaque"Nunca compreendi a enologia como só fazer o vinho. muitas vezes penso no vinho, no seu nome e inclusive ajudo a fazer o rótulo ou crio eu mesmo, não a desenhar, mas ao lado de quem desenha. penso no vinho, dou-lhe uma história e um rosto, e gosto de o apresentar."

Chega cedo à empresa, despacha os assuntos ligados com a enologia, faz provas entre as 11.00 e as 12.30, depois segue-se o briefing diário com os seus cinco enólogos, entre os quais o seu braço direito, Carlos Rodrigues. Guarda o final do dia para ver e responder aos emails. Durante o dia é por telefone ou whatsApp: "Nunca largo o telefone, ando sempre de auricular para andar com as mãos livres". E continua, sem perder o fôlego. "Termino o dia a jantar cerca das 22.00, antes ainda vou à passadeira correr enquanto faço um update nas notícias. E antes de dormir ainda despacho uns emails. Infelizmente o dia só tem 24 horas", diz novamente a sorrir.

Mas, como tudo tem um início, no nosso "brunch falseado" falou-se, ainda antes do meu café terminar, de como tudo começou. Carlos Lucas tem gosto no que conta. "Tirei o curso em Coimbra. Na altura chamava-se engenharia de produção agrícola, o curso de enologia ainda não existia. E, como acontece com muita gente, também tive um professor que fez a diferença: Rogério de Castro, que na altura era o único catedrático em viticultura em Portugal. Apesar do estatuto era, e ainda é, um homem da terra que chegava à universidade com a sua boina num Opel Corsa vermelho de dois lugares. Tem uma quinta e é produtor de vinho. Influenciou-me o facto de ser um professor muito virado para a prática".

Carlos Lucas começa a trabalhar no centro de estudos da Bairrada, em Anadia. Aí, conta, foi-se apaixonando aos poucos pelo laboratório e pelas análises dos vinhos. "Comecei a achar piada e quando dei por mim estava a ajudar a preparar as provas para o vinho da Bairrada". Acrescenta: "E começaram a dizer que eu provava bem, que tinha jeito". O seu contacto com o vinho era o normal de tantos outros nesse tempo. Já tinha acompanhado o avô materno, que era agricultor, a fazer vinho, mas pouco mais do que isso.

Já engenheiro surge então um convite para ir para a cooperativa de Nelas como enólogo. "E aí começa a minha carreira". Há precisamente trinta anos.

"Recordo-me que no primeiro ano em Nelas fiz, sozinho, oito milhões de litros de vinho. Eram filas de tratores de três quilómetros para descarregar uvas, incluindo sábados e domingos", conta. Foi no auge da produção vinícola do Dão com grandes empresas a tornar-se elas próprias produtoras. "Por essa altura, comecei a implementar regras empresariais à cooperativa". Está nos genes, Carlos Lucas é filho e sobrinho e primo de empresários, "toda a gente da família está ligada a empresas", sublinha.

A conversa regressa a Nelas. "Fazíamos muito vinho e várias empresas, como por exemplo o José Maria da Fonseca, começaram a perceber que eu trabalhava bem e vieram visitar Nelas para provar e escolher vinhos para marcas como a Meia Encosta, Grão Vasco, para o Terras Altas, etc, marcas do Dão que se vendiam na altura".

Foi da sua cabeça que veio a ideia de a cooperativa engarrafar o seu próprio vinho. Não foi fácil convencer o diretor da cooperativa, "mas avançamos". "A Cooperativa de Nelas foi a primeira em Portugal a engarrafar vinho na sua própria estrutura, a vender e a exportar". Isso foi conseguido a trabalhar todos os dias. "Não tinha namorada, não havia wifi, e não tinha grandes hipóteses de ocupar o tempo... então trabalhava". Confessa o seu empenho, mas dá-lhe duas razões lógicas: a insegurança do início da profissão e o gosto por trabalhar. "Hoje há uma palavra para isso e sei que sou workaholic. Sou feliz a trabalhar". Diz que, na altura, também trabalhava aos fins de semana o que o levou a um episódio que não se escusa a partilhar: "Um dia fui chamado pelo diretor que me diz para lhe dar a chave da adega e que não a podia ter. Com isso, logo ali comecei a arrumar as minhas coisas, os meus cadernos, etc. Quando ele então me diz que não era para me ir embora, mas sim que tinha de deixar de trabalhar tanto. Porque andavam a dizer que eu fazia tramoias na adega e essa era a razão porque estávamos a vender tanto".

Com tempo livre de sobra, quando começou a cumprir o horário de saída às 17.00 e a ter fins de semana, o então jovem enólogo decide arrendar uma vinha com dois hectares. Pouco tempo mais tarde consegue a vinha do lado e de um momento para o outro o seu part-time consistia em 10 hectares de vinha. "Comecei a fazer coisas especiais e percebi que fazer vinho era muito interessante". Com isso, em 1994, foi então convidado para ser sócio da empresa Dão Sul - que deu origem à Quinta do Cabriz - mas manteve-se como enólogo em Nelas (até 1997) e, como havia ainda alguns minutos disponíveis no seu dia, era consultor de duas quintas em Santar. "Pelo meio disso tudo fui tirar uma pós-graduação em viticultura e enologia em Montpellier. Foi uma fase de vida bastante agitada e que dá para perceber porque sou workaholic".

Para além de ter trabalhado os vinhos do Dão, na altura foi fazer vinho para o Brasil. Esteve na génese de um projeto de levar castas portuguesas e espanholas para a América Latina. "Fui convidado para ficar por lá a fazer os vinhos e isso levou-me a ir ao Brasil de dois em dois meses, entre 2003 e 2008. Isso traz-me alguma projeção internacional, fui eleito enólogo do ano em 2007 em Portugal e com isso recebi mais convites para fazer vinhos fora de Portugal, vindos de Espanha, Itália e África do Sul, o que me deu um estofo muito grande".

Mas Carlos Lucas não gosta de fazer sempre as mesmas coisas e muitas vezes dedica-se a pensar no nome, marca e até no rótulo do vinho. "Nunca compreendi a enologia como só fazer o vinho. Penso no vinho, no seu nome e inclusive ajudo a fazer o rótulo ou crio eu mesmo, não a desenhar, mas ao lado de quem desenha. Penso no vinho, dou-lhe uma história e um rosto, e gosto de o apresentar. Nunca fui o enólogo de estar de bata branca no laboratório, isso era pouco para mim. Mas, atenção, tenho muitos profissionais que me acompanham. Eu não sou o faz tudo. Penso sim em tudo. Mas não faço tudo".

Por volta de 2011 vende então sua parte na Dão Sul e funda a empresa Carlos Lucas Vinhos Lda., conhecida como Magnum Vinhos, que no passado dia 13 de setembro fez 10 anos. "Comecei do zero e em 10 anos estamos no mercado com marcas bem distribuídas, como a Quinta de Ribeiro Santo, a Quinta das Herédias, no Douro, no Alentejo o Maria Moura e no vinho verde a Casa Grande". Tudo isto sem esquecer a ligação à Universidade, sobretudo, e ultimamente, à de Aveiro - com alguns estudos feito por si, como por exemplo a retirada dos sulfitos do vinho por alta pressão. A comemorar a primeira década de empresa não há que evitar uma pergunta para a despedida de uma conversa fluida e que, certamente, durou mais que o voo de Viseu a Lisboa. Como espera que a empresa esteja daqui a 10 anos? Resposta pronta: "Com o dobro da dimensão que tem hoje. Iremos crescer por conta dos projetos que temos no Douro ligados ao enoturismo. Vou apostar nessa área".

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