Carlos Fiolhais. Coimbra mantém encanto na hora da despedida

O professor catedrático despediu-se esta segunda-feira da universidade. Aos alunos e colegas leu o discurso que antecipou <a href="https://www.dn.pt/sociedade/hoje-e-o-primeiro-dia-do-resto-da-minha-vida-13928156.html" target="_blank">em artigo de opinião no DN</a>. Afinal, foi o jornal (a par do Século) que o ensinou a ler. Uma lição de uma hora em que condensou 700 anos. Na calha estão projetos, como a reedição de algumas obras de Rómulo de Carvalho, cujos livros leu em criança e lhe abriram a porta da Física.
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Fato escuro, camisa branca, gravata azul. O humor de sempre, a humildade, e à frente uma plateia de antigos e atuais alunos, professores e companheiros de uma vida: 44 anos na universidade de Coimbra. Carlos Fiolhais despediu-se assim esta segunda-feira de uma longa e intensa carreira que começou e terminou ali, enquanto estudante de Física, até ser professor catedrático.

Aquela que estava anunciada como a última aula do professor e ensaísta, um dos nomes mais conhecidos do país na divulgação da ciência, aconteceu num composto auditório da reitoria, que por certo teria sido pequeno demais numa era pré ou pós covid. Assim, muitos optaram por segui-la em streaming, mas foram tantos aqueles que quiseram estar presencialmente que, no final, Fiolhais não conteve a emoção. Ao longo de uma hora conseguiu condensar 700 anos e passar por toda a "História da Ciência na Universidade de Coimbra". Ainda assim, foi logo avisando: "como sabem a última aula já foi [exibindo no ecrã uma selfie com os alunos], por isso esta já não é bem a última. E se houver alguém que não tenha conseguido assistir, estou disposto a vir fazer uma terceira lição, eventualmente a montar um negócio de lições, acessível...". Imune às gargalhadas, que por várias vezes fez despontar na plateia, o professor traçou todo o historial da Universidade onde passou 44 anos.

"É muito pouco na história da universidade. Por isso, já que a Física estuda a matéria condensada, vou tentar agora a condensada matéria". E assim fez. Desde o nascimento da universidade de Coimbra (que ocorreu em Lisboa, em 1290), até à atualidade, foi uma longa viagem. O professor começou com uma imagem daquele tempo e usou uma foto recente, para permitir a visão contrastante do ensino de então com o de agora. "O que é que permanece? o professor e o gesto de chamar a atenção. A grande diferença está nos alunos, são muito mais. E estão com menos atenção...", mesmo que não dramatize nem diabolize as novas tecnologias, não fosse ele o responsável pelo salto para as novas tecnologias que a universidade deu, em 1998. Não fosse ele um pioneiro da blogosfera (De Rerum Natura é disso exemplo), um dos homens da ciência que melhor compreende a natureza das coisas, a beleza delas traduzida em palavras. Não fosse a ele que a reitoria pediu que organizasse a biblioteca. Porque foi ele, afinal, quem criou o Centro de Ciência Viva da Universidade, batizada com o nome de Rómulo de Carvalho, António Gedeão para a poesia e para o comum dos mortais. Não podia ser de outra maneira: Carlos Fiolhais já contou a história vezes sem fim, mas não podia terminar este capítulo da vida sem a replicar. Foram os livros de Rómulo que o fizeram apaixonar-se pela Física, que o levaram para Coimbra. "Foi nesta casa que eu entrei em 1973, num anfiteatro muito desconfortável. Mas o ambiente era quente. Havia [grandes] mestres que queriam transmitir a Física".

Aos 65 anos, Carlos Fiolhais está pronto para encerrar apenas este capítulo, já que - como faz questão de lembrando, citando uma e outra vez a canção de Sérgio Godinho - "este é o primeiro dia do resto da tua vida". E por isso diz-se pronto a contribuir para ajudar a crescer mais ainda o Centro, assim como a divulgar a obra de Rómulo de Carvalho. "É a minha maneira de retribuir. Ele é o nosso maior historiador da ciência. E por isso é natural que algumas edições novas apareçam. Ainda não posso contar tudo, mas ainda hoje falei com a filha, a esse respeito", revelou.

Do rol de mestres e antepassados que deixaram a sua marca na ciência, na física e na universidade de Coimbra, o professor foi destacando vários, seguindo a linha do tempo. Professores e alunos. Começou por Christophorus Clavius (contemporâneo de Galileu), um jesuíta que alguns historiadores de ciência consideraram o Euclides do século XVII; passou por Pedro Nunes, Bernardino António Gomes, António Gião, entre muitos outros. Aliás, deixou clara a ideia de que muitos foram os alunos da universidade de Coimbra que haveriam de ter, na história, um papel tão importante - no que à ciência diz respeito. E de como em pleno século XII já funcionava por cá "uma espécie de programa Erasmus", que trouxe a Portugal e a Coimbra tanto "estrangeirado".

Mas Fiolhais está de olho nos 250 anos da reforma pombalina da universidade de Coimbra - que se celebram no próximo ano - no que considera ter sido "uma tentativa falhada dos nobres em Lisboa" para a menosprezar. E exemplificou então com o paradoxo do iluminismo: "para que a sua luz brilhasse mais, o Marquês de Pombal fazia questão de apagar a luz dos outros". Ainda assim, dando exemplos do legado que deixaram à ciência, sublinhou que "não é verdade que os jesuítas fossem obscurantistas". Numa alusão ao que seriam, as fake news da época, recordou que " já se produziam abundantemente e usando as imprensas oficiais, como mostra a propaganda da época".

Carlos Fiolhais deixou na sua última aula em Coimbra o desejo de ver preservado o legado de tantos séculos, e dos anos mais recentes, como o Gabinete da História Natural de Coimbra ou o Gabinete de Física, entre outros. Nesse rol destacou também o Jardim Botânico, um dos mais antigos das universidades, que ali começou "aquilo a que hoje se chama biodiversidade". Ou o observatório meteorológico, criado ainda no século XIX, antes do astronómico. E lembrou que "as primeiras medidas sismológicas foram feitas em Coimbra". Aconteceu, por exemplo, com o maior sismo do século na Península Ibérica, em Benavente, registado em abril de 1909 no sismógrafo de Coimbra.

"É importante preservar os lugares e contar-lhes a história", enfatizou Carlos Fiolhais, numa altura em que já fazia a transição para o século XX, para Egas Moniz ( 1874-1955))e a criação da angiografia (1927). "A história que vale a contar é que os primeiros raio x em Portugal foram feitos aqui, no gabinete de física da universidade".

Quase para o final, deixaria um (auto)retrato de Almada Negreiros - também ele aluno de Coimbra, no secundário - onde aparece Francisco Nazareth, professor catedrático em Coimbra, a quem uma traição conjugal colocou 30 anos fora da academia. "Está na altura de fazer essa história", insistiu Fiolhais, quando apelava à preservação da memória e do património. "No meu 7º ano vim visitar o laboratório de química. Além dos livros de Rómulo de Carvalho, se calhar também foi isso que me abriu a porta".

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