Caricato ou escabroso?
Uma comunicação enviada pelo Ministério da Educação aos municípios e às escolas obriga-me a escrever novamente sobre a decantada descentralização. É penoso, confesso, mas necessário perante a ausência de rigor e de planeamento com que tudo continua a ser conduzido.
O Ministério comunicou a aquisição de computadores e videoprojetores para distribuição pelas escolas. Acontece que esta medida vai ao arrepio do que está consagrado no diploma da transferência de competências na Educação.
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 21/2019, de 30 de janeiro, o Governo concretizou a transferência de competências para os municípios, entre as quais a relativa ao apetrechamento das escolas. Entende-se por apetrechamento (Artigo 32º do diploma citado), "a aquisição de equipamento básico, mobiliário, material didático e equipamentos desportivos, laboratoriais, musicais e tecnológicos, utilizados para a realização das atividades educativas".
Transferida a competência, ficou por definir e transferir o envelope financeiro. Transferida a competência, ficou por regulamentar o exercício da mesma. E assim estamos, há 3 anos, sem esclarecimentos, sem diálogo, mergulhados em total opacidade.
Veja-se então o caricato. O Governo transferiu a competência para os municípios, teve 3 anos para a regulamentar e não o fez, e vem agora usurpar o exercício da mesma depois de a ter transferido. E ainda por cima, os equipamentos nem sequer cobrem a totalidade das necessidades existentes.
O caso assume contornos escabrosos. Vejamos o caso dos videoprojectores. Estes equipamentos têm um valor de mercado que ronda os 2.400 euros, quando com menos de 2.000 se adquiriam quadros interativos tácteis, LED, de última geração, que oferecem muito mais aos professores e aos alunos para a dinamização da sala de aula, nomeadamente, para a utilização de conteúdos digitais.
Ao mesmo tempo verifica-se que o contrato de fornecimento dos videoprojectores inibe qualquer intervenção que não a do fornecedor da Administração Central, ficando os municípios impedidos realizar gestão e manutenção integradas do equipamento tecnológico das escolas.
Pior ainda com os computadores, que nem sequer têm prevista a respetiva montagem e manutenção, atirando-se para cima das escolas e dos professores essas responsabilidades e a obrigatoriedade do preenchimento regular de mais uma plataforma, agora para gestão dos equipamentos entregues nas escolas.
De sublinhar que os computadores fornecidos são para as áreas administrativas das escolas, portanto, para serem operados pelo pessoal não docente, que foi transferido para os municípios. O que significa que os funcionários municipais vão trabalhar com equipamentos que o seu município não instalou, não mantém, nem pode integrar na rede de equipamentos municipais.
Evitar-se-ia esta enorme trapalhada se o Governo cumprisse o que decretou em 2019. Tendo transferido a competência para os municípios, bastaria agora regular o seu exercício e transferir para as autarquias o envelope financeiro que vai gastar. Estas, com maior propriedade, exerceriam as suas responsabilidades na gestão deste processo, tomariam as decisões de investimento mais adequadas às necessidades das escolas, instalariam os equipamentos e reportariam a informação necessária à Administração Central, libertando as escolas de mais essas dores. Assim se cumpriria o espírito da descentralização. Poder para decidir. Recursos para executar.
Tudo visto, já falhámos, como antecipei aqui [artigo de há duas semanas]. Só há um caminho. Suspenda-se esta descentralização e dialogue-se seriamente com os municípios portugueses.
Professor do ensino superior