"Cargas residuais". Itália cedeu após impedir centenas de migrantes de desembarcar

Autoridades só permitiram inicialmente o desembarque de famílias, mulheres, menores não acompanhados e pessoas vulneráveis de dois navios na Catânia, naquele que foi o primeiro teste à política migratória de Giorgia Meloni.
Publicado a
Atualizado a

O governo italiano permitiu ontem o desembarque no porto da Catânia, na Sicília, dos 214 migrantes que continuavam a bordo do navio Geo Barents, dos Médicos Sem Fronteiras, depois de uma inspeção médica considerar que estavam todos "frágeis". No domingo, só tinham sido autorizados a desembarcar as famílias, as mulheres e os menores não acompanhados, assim como as pessoas vulneráveis, com os restantes a serem considerados pelo ministro do Interior italiano, Matteo Piantedosi, como "carga residual" e o navio a receber ordem para voltar para alto-mar. Outro navio onde havia migrantes retidos, o Humanity 1, devia também ser alvo de nova vistoria.

Estes "desembarques seletivos" foram o primeiro teste à política migratória do novo governo de Giorgia Meloni, a líder do Irmãos de Itália (extrema-direita), que no passado defendeu "repatriar os imigrantes a bordo e afundar os navios". A primeira-ministra acusa as organizações não-governamentais que efetuam os resgates no Mediterrâneo de agirem como um "serviço de táxi" para aqueles que querem entrar na União Europeia.

A bordo do Humanity 1, da ONG alemã SOS Humanity, continuavam ontem 35 pessoas que não foram autorizadas a ir para terra no fim de semana (outras 144 puderam desembarcar), tendo pelo menos 30 delas entrado em greve de fome. No Geo Barents, 357 tinham sido autorizados a desembarcar, mas 214 continuavam a bordo. Três deles, no desespero, tinham-se lançado à água durante a noite, passando a noite no porto. Um deles foi mesmo hospitalizado. Os médicos acabaram por declarar que todos estavam em situação de fragilidade e o mesmo pode ocorrer com os do Humanity 1.

Um terceiro navio, o Rise Above, da ONG alemã Mission Lifeline, foi autorizado a desembarcar os 89 migrantes - entre eles 40 menores e oito bebés - no porto de Reggio Calabria. Outras seis pessoas já tinham sido retiradas ainda em alto mar, devido a emergência médica. Os migrantes estão agora num centro de acolhimento, à espera de transferência. O destino deles foi diferente dos que ficaram retidos na Catânia porque, segundo a agência de notícias italiana ANSA, Itália terá considerado, neste caso, um evento SAR (da sigla em inglês de Busca e Salvamento) nas zonas de resgate em Malta. Nos outros dois casos, não terá considerado que seguiram as regras europeias - o que eles negam, dizendo informar as autoridades dos diferentes países assim que uma embarcação em dificuldades é detetada.

Segundo a ANSA, a França abriu entretanto as portas do porto de Marselha ao navio Ocean Viking, de bandeira norueguesa, da ONG europeia SOS Mediterranée. A bordo estão 234 migrantes, que aguardavam ao largo da Sicília para conhecer o seu destino - sendo que alguns já foram resgatados há mais de 15 dias. O desembarque destas pessoas será feito com a supervisão da autarquia, sendo que todos a bordo serão registados como requerentes de asilo.

"Não podemos permitir que mais uma vez os nossos irmãos migrantes que vêm da fome, das guerras, sejam novamente tratados como lixo, como cargas residuais, e não como pessoas", disse ontem o vice-presidente da Conferência Episcopal Italiana, o bispo Francesco Savino, citado pela ANSA, antes de ser dada a luz verde para o desembarque do Geo Barents.

De facto, esta não é a primeira vez que Itália fechas as portas aos navios - e promete não ser a única. Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro e titular da pasta das Infraestruturas e Transportes (logo dos portos), foi ministro do Interior entre 2018 e 2019. E ainda está a ser julgado por rapto, por ter recusado a entrada de um navio da espanhola Open Arms nos portos italianos.

Salvini, da Liga, defende que a imigração ilegal são "viagens organizadas, cada vez mais perigosas, que financiam as armas e a droga" e que isto tem que acabar. No Twitter congratulou-se com a decisão de uma organização não governamental espanhola de cancelar a missão prevista no Mediterrâneo, dada a incerteza das medidas que o novo governo italiano tomará. "Continuamos assim. A Itália não será cúmplice do tráfico de seres humanos", escreveu, partilhando uma imagem com a foto de Piantedosi (também da Liga) e daquela que é apelidada a "primeira vitória".

Twittertwitter1589924935153389568

Piantedosi diz que os navios são como "ilhas" e quem está a bordo está sob jurisdição do país da bandeira no navio, não de Itália. E diz que o seu país não aceita "lições de ninguém em relação ao respeito pelos direitos humanos". Enrico Letta, do Partido Democrático (oposição), tinha considerado a situação uma "aberração".

susana.f.salvador@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt