Cardoso, Narciso & Cia
Quem vai à guerra dá e leva. Na minha cidade organizávamo-nos por bairros, disputávamos bola e território, apedrejávamo-nos todas as semanas à saída da escola, às vezes havia mazelas, e quando já só havia dois bandos dominantes, decidimos delegar a guerra nos mais matulões, que elegemos chefes, abrutalhados e ambos repetentes. Cardoso e Narciso passaram a lutar de joelhos, frente a frente e com mãos bem firmes nos ombros um do outro, do inimigo. O combate agora era de cabeças, testa contra testa, e ainda hoje nos horroriza a memória daquele embate surdo de duas frontes que só terminava com a rendição de algum deles. Atrás do Cardoso e do Narciso, as claques ululávamos: Cardoso, Cardoso, Cardoso! - Narciso, Narciso, Narciso! Até ao dia em que deu mesmo sangue, e a autoridade disciplinar decidiu punir todos, mas mesmo todos, com palmatória de fazer inchar as mãos, mais a lição sobre convivência e cidadania.
Guerra estúpida, aquela! Estúpida como todas as guerras, e mais esta que se trava no leste europeu e cujos estilhaços já começam a atingir-nos. Só que, nesta, não há autoridade disciplinar que se vislumbre e, pior, é uma guerra connosco, que nos diz respeito. É uma guerra em território europeu que desafia a União Europeia e a NATO, organizações a que pertencemos e que nos comprometem. As principais vítimas já são os cidadãos ucranianos que vão viver histórias de horror: morte, perseguições, massacres e deslocamentos forçados e maciços da população. Após as duas guerras mundiais do século XX, a guerra civil espanhola e a guerra na antiga Jugoslávia, na década de 1990, milhões de refugiados fugidos do assédio e da repressão tiveram de deixar as suas casas.
Acontece que aprendemos pouco com histórias de más notícias. E o pouco é quase sempre devagar. As imagens avassaladoras da invasão russa da Ucrânia, e o abandono deste Estado soberano e da sua população civil face à passividade da comunidade internacional e das suas organizações multilaterais, revelam que regressámos mais uma vez ao passado: à lei do mais forte, sem regras nem limites. No pódio da ONU, onde o obsoleto conselho de segurança é boicotado pelo veto do agressor e a abstenção dos seus aliados, fazem-se orelhas moucas aos apelos de António Guterres, e as partes trocam acusações, quando todos sabemos que a soma de duas meias-verdades não faz a verdade inteira.
Por cá, por toda a Europa Ocidental, estávamos acostumados a guerras distantes e a viver confortavelmente sob o guarda-chuva do polícia mundial americano, sem muito esforço militar da nossa parte, portuguesa e europeia. Parece que esses tempos acabaram, porque os Estados Unidos já abandonaram esse papel. E o que vem aí, por todo o espaço da União, é um enorme aumento dos orçamentos militares, desviando para a Defesa europeia investimentos que deveriam ser prioritariamente aplicados em áreas como saúde, educação, transição energética, desenvolvimento.
Esta guerra é estúpida e o tormento da Ucrânia vai mudar o rosto da Europa. Para lá do povo ucraniano, o maior perdedor é já a União Europeia, que apesar dos esforços unilaterais da Alemanha de Merkel, ao longo das duas últimas décadas, após o colapso da antiga União Soviética, perdeu a oportunidade económica de uma parceria pacífica com a Rússia, rica em recursos, mas a precisar de tecnologia e bens de capital, enquanto a Europa tem tecnologia e bens de capital e precisa de recursos. Em vez disso, irá perder mercados importantes e pagará muito mais cara a energia. Por ora, diante do que se passa na Ucrânia, somos uma amarga deceção: não fizemos e não faremos o suficiente para ajudar os ucranianos, e provavelmente esquecemos que defendê-los é agir em nossa própria defesa, porque não há alternativas boas ao diálogo, à paz e à democracia.
Jornalista