Capa obscenamente bela para romance a quatro mãos
O livro intitula-se Gramática do Medo e tem uma novidade: a de ser escrito a quatro mãos: Maria Manuel Viana e Patrícia Reis. E aí entra-se num terreno da literatura que pode ser muito pantanoso em vários aspetos, nada a que as duas autoras não tenham sobrevivido e bem. Daí ser incontornável não deixar passar em branco este romance, até porque a crítica portuguesa anda demasiado atarefada com a chuva de livros estrangeiros para produzir textos (ou fugir a) sobre o nosso meio literário.
A Gramática do Medo gera uma pergunta inicial que rapidamente se deve ignorar de forma a ir vencendo as páginas: quem escreve o quê? Esse pormenor ridículo preocupa o leitor de início, designadamente quem conheça as autoras de anteriores publicações literárias. Depois há a capa, um maravilhoso óleo sobre madeira de Dino Valls, que é obscenamente belo e que lá para meio do romance nos dá a chave para uma leitura visual da obra, que já vinha transparecendo na construção do par de personagens. Diga-se que a existência de protagonistas com textura - ou espessura, para usar o termo mais técnico - não é coisa fácil de encontrar na maioria dos livros de autores portugueses e aqui deparamo-nos com essa boa característica de um livro.
Não se fica por aí a dupla de autoras, pois consegue surpreender de forma quase inocente ao colocar questões fraturantes ao longo da narrativa como se fosse coisa pouca e não pecaminosa, como é o facto de uma relação incestuosa entre irmãos e de uma paixão entre duas amigas que faz tremer o leitor a ver no que dá. Leia-se isto: "Cortei o cabelo curto, muito curto. Deixei uma melena mais comprida, do lado direito, a fazer lembrar o teu irmão." Uma situação que logo à frente tem continuação: "Ele ficaria no meio, os seus braços em cima de nós, ambas encostadas ao seu rosto, felizes pelo cheiro de canela, pela sua pele"... Bem, o que é atrás reproduzido não implica que estejamos perante a novidade erótica que foi O Amante de Lady Chatterley para a sua época, serve apenas para confirmar que nos tempos que correm as escritoras podem ir por terrenos que aos escritores estão proibidos.
O romance parte de uma premissa muito simples, que até faz recear estar a bater numa velha muleta literária. Sara e Mariana são duas grandes amigas. A dado momento, uma desaparece e a que fica vai ser obrigada pela mãe da outra a fazer mais do que questionar-se sobre o desaparecimento da amiga. Logo aí, o modo como essa busca tem origem mostra que as autoras têm mão no argumento e que o plasmam corretamente nas 172 páginas do romance. Entre as páginas 44 e 47 surge uma conversa da mãe da desaparecida que dá uma outra versão dos factos à amiga que não partiu e aí o leitor leva um murro no estômago pouco habitual nas justificações contemporâneas para a tomada de decisões. Mais, o modo como é apresentada a diferença de opiniões, a da filha e a da mãe, é um motivo sério para o leitor perceber que tudo o que tinha lido até aí era apenas um exercício de aquecimento e de contextualização que se verificava nesta Gramática do Medo.
Talvez seja a experiência de vida das duas autoras que consegue pôr em marcha um romance ao mesmo tempo inovador e sempre a libertar-se da puberdade costumeira da escrita nacional nestes cenários do que é a amizade e a vontade de cortar com a vida tradicional. Além de que este romance permite ao leitor enveredar por uma das principais funções da literatura, a de servir de ponto de partida para reflexões próprias de cada um ao confrontar-se com o desenrolar da história que está a ler.
Apesar de gastar algumas folhas com a demasiado batida questão de as mulheres continuarem a ser seduzidas por um homem mais velho e casado e de gostarem de repetir o cliché num tempo em que tal já não deveria acontecer; ou de a narrativa conter algumas situações que desagradam às leitoras mais feministas; ou da auto-comiseração com a infelicidade própria, esta Gramática do Medo conjuga bem as regras da literatura em língua portuguesa. Até porque ao chegar-se a este romance existia sempre o receio de que um trabalho a quatro mãos faça as autoras desembocar num cruzamento em que se podem perder. E isso não aconteceu com Maria Manuel Viana e Patrícia Reis.