Caos em Washington

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A democracia funciona de formas estranhas, especialmente num país democrático que está praticamente dividido ao meio por dois partidos opostos, como é o caso dos Estados Unidos em 2023. Uma das consequências é que uma pequena minoria muito concentrada tem capacidade de influenciar o equilíbrio do poder, como demonstrado na Câmara dos Representantes dos EUA, onde, a 3 de outubro, 8 Republicanos da ala direita conseguiram pôr fim ao mandato do Presidente da Câmara, um dos cargos mais poderosos do Governo dos EUA, o segundo na linha de sucessão da Presidência, a seguir ao Vice-Presidente. Pela primeira vez, uma votação para "abandonar a Presidência" levou à destituição do Presidente da Câmara Baixa, Kevin McCarthy, demonstrando a discórdia aberta no seio do Partido Republicano e deixando uma das duas câmaras do Congresso dos EUA num estado caótico.

Só podemos compreender estes acontecimentos sem precedentes se recuarmos às eleições intercalares de novembro de 2022, quando o Partido do Presidente, Democrata, se saiu melhor do que o esperado, mantendo o controlo do Senado e limitando as suas perdas na Câmara e onde o Partido Republicano acabou com uma minúscula maioria de 222 contra 213 deputados. Para aprovar uma medida contra a qual se espera que os 213 Democratas votem em bloco, a maioria Republicana não pode dar-se ao luxo de perder mais do que 5 votos Republicanos. É esta equação que confere um enorme poder a uma pequena minoria. A ala direita do Partido Republicano, os MAGA Republicanos, já utilizou este poder para extrair de McCarthy grandes concessões quando o elegeu Presidente da Câmara, depois de uma maratona de 15 votações em janeiro de 2023, durante a qual ele aceitou que se alterassem as regras da Câmara, permitindo que apenas um único membro da Câmara pudesse submeter uma "moção para que o Presidente pudesse abandonar o lugar", um procedimento que levaria a uma votação para determinar se McCarthy continuaria a ser Presidente da Câmara ou não. Já na altura muitos previram corretamente, que uma tal concessão conduziria inevitavelmente à destituição do Presidente da Câmara.

É triste constatar que o que desencadeou todo este drama foi a inesperada medida bipartidária de McCarthy que foi decidida no fim de semana passado, para evitar o encerramento do governo. Apesar de ter concordado com a maior parte das suas exigências, McCarthy não conseguiu que o seu flanco direito, precisamente as pessoas que esta semana votaram a favor da sua destituição, concordasse com uma medida para evitar o encerramento do governo, pelo que se sentiu obrigado a voltar-se para os Democratas e tentar a sua cooperação com muitos Republicanos na aprovação de uma medida provisória de última hora para manter o governo financiado durante 45 dias.

O modo como funciona o governo dos EUA, o Congresso passa leis que aprovam as despesas, mas também exige que sejam aprovadas decisões em separado para autorizar o financiamento dessas despesas (tal como obriga a um acordo para aumentar o teto da dívida pública, como vimos na quase crise de junho deste ano) e, se o Congresso se recusar a autorizar o financiamento, uma parte importante do governo deixa de funcionar, verificando-se aquilo a que se chama um "encerramento do governo". Já houve 21 encerramentos do governo no passado, e essas experiências mostraram que o partido que provoca o encerramento tende a pagar um preço político nas eleições seguintes, pelo que McCarthy tinha boas razões para tentar encontrar um compromisso para evitar um encerramento, mesmo que isso significasse enfurecer a sua ala direita. O facto de ter sido severamente punido por ter feito a "coisa certa", fazendo um compromisso razoável com o partido opositor, é um sinal seguro das dificuldades que se avizinham, especialmente porque os EUA têm atualmente um governo dividido: a Presidência e o Senado são controlados pelos Democratas e a Câmara dos Representantes pelos Republicanos. Uma vez que é necessária a aprovação dos três centros de poder para passar a maioria das medidas, se a ala direita dos Republicanos na Câmara não permitir qualquer entendimento com os Democratas, é legítimo perguntar como é que o governo poderá funcionar.

O que é que vai acontecer a seguir? A Câmara dos Representantes não pode realizar qualquer atividade sem primeiro eleger um novo Presidente. Concordaram em regressar a Washington na próxima terça-feira, com a primeira votação potencial para um novo Presidente agendada para a próxima quarta-feira, 11 de outubro. Os Republicanos têm a maioria, o Presidente da Câmara, por definição, deve ser Republicano, mas será que conseguem chegar a acordo sobre um candidato que consiga reunir 216 votos, o que significa que essa pessoa tem que ter alguns dos votos dos Republicanos MAGA, já que todos os Democratas votarão no seu líder Democrata da Câmara, Hakeem Jeffries, que ficará sempre aquém da maioria, já que só recebe votos dos Democratas.

Na votação para destituir o Presidente da Câmara Baixa, todos os Democratas votaram em uníssono contra McCarthy. De acordo com a prática normal da Câmara, este facto já era esperado, pois não cabe aos Democratas envolverem-se em querelas Republicanas. Na manhã da votação, o caucus Democrata (todos os Democratas da Câmara) reuniu-se para definir uma posição comum, e ficou claro que nenhum deles tinha qualquer vontade de salvar McCarthy. Ninguém confiava nele. McCarthy assinou um acordo com Biden em maio de 2023 para aumentar o limite da dívida e fixar as despesas do Estado durante dois anos, renegou prontamente o acordo, enfureceu os Democratas ao abrir um processo de destituição do Presidente Biden sem quaisquer provas de irregularidades, disse que nunca pediria o apoio dos Democratas para salvar o seu emprego e menosprezou-os ainda no fim de semana passado. Na reunião os Democratas concordaram numa posição conjunta e não salvar McCarthy. Será que vão arrepender-se disso? Será que vão acabar por ter um Presidente da Câmara ainda mais difícil de lidar do que McCarthy? Ou será que o Partido Republicano pagará a sua incapacidade de governar perdendo a maioria nas eleições para a Câmara em 2024?

É concebível que um candidato Republicano moderado ao cargo de Presidente da Câmara, que seja menos detestado do que McCarthy, possa atrair alguns votos Democratas para garantir a eleição sem os Republicanos MAGA? Embora este cenário não seja de desconsiderar, é altamente improvável no atual clima político ​​​​​​​envenenado de Washington. Um cenário ainda mais improvável seria que alguns Republicanos aceitassem votar no Democrata Hakeem Jeffries para Presidente da Câmara. Por isso, vamos ter de esperar para ver até que os Republicanos se recomponham o suficiente para eleger um Presidente da Câmara, seja qual for o tempo que isso demore, pelo que vamos quase de certeza passar por um impasse total entre uma Câmara controlada por Republicanos de direita e um Senado controlado por Democratas.

E o Congresso tem questões importantes a decidir no curto prazo. O acordo inspirado por McCarthy para evitar a paralisação do Governo tem a duração de 45 dias, até 17 de novembro, ou seja, daqui a apenas 6 semanas. E esse acordo apoiado por muitos de ambos os partidos, mas a que se opõem alguns dos Republicanos na Câmara, deixou de fora um financiamento muito necessário para a Ucrânia. Conseguirão os Republicanos organizar-se a tempo de tratar destas e de outras questões importantes?

E qual será a posição do ex-Presidente Trump, o mestre da desorganização que gosta de semear o caos e que tem uma influência considerável junto dos Republicanos na Câmara (menos no Senado)? Até agora, tem-se mantido afastado da batalha dentro do Partido Republicano, em parte para proteger cuidadosamente a sua imagem de "outsider" do ineficiente establishment de Washington, e também talvez porque ele e os seus assessores não vêem grande vantagem no seu envolvimento.

Assim, resta-nos testemunhar o caos e a confusão em Washington, acrescentando mais um triste capítulo na reputação internacional dos EUA durante estes tempos de excecional turbulência na política americana.

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