Cantos nómadas
Estamos cada vez mais ligados pelas redes digitais, permanentemente conectados uns com os outros. Simultaneamente, estamos cada vez mais isolados, desligados uns dos outros. É o grande paradoxo da nossa vida contemporânea.
Grande ironia: nunca como hoje estivemos tão próximos, à distância de um clique, de uma chamada, de uma ligação que podemos a qualquer momento acionar (ou que nunca se desliga) a partir de dispositivos eletrónicos que prolongam o nosso corpo físico e que transportamos connosco a toda a hora - e nunca como hoje estivemos tão longe uns dos outros.
O sentido etimológico da palavra religião é precisamente a ideia de ligação. Religare, voltar a ligar, reencontrar a ligação com aquilo de que fomos separados. O sentimento religioso é a procura dessa ligação perdida, uma relação do individual com uma totalidade, uma transcendência. Tal como o amor na sua versão idealizada, platónica, é uma religação.
O mundo em rede é uma versão profana e prosaica da religião. Estamos todos ligados, hiperligados, mas sem epifania religiosa.
O mundo está há séculos dominado pelas grandes religiões monoteístas e o poder das suas instituições, das suas igrejas e dos seus exércitos de acólitos; e pelos derivados dessas religiões, as suas variáveis disponíveis no grande mercado das crenças contemporâneas e das suas práticas de congregação de fiéis e conversão de infiéis.
Eu fui educado no catolicismo, mas hoje não me revejo nem na religião cristã nem em qualquer outra. Qualquer dessas grandes religiões me parecem mais formas de poder e repressão do corpo, das ideias e da liberdade individual do que formas de aceder ao divino ou experimentar a transcendência.
Partilho a crença de Natália Correia de que "os deuses são da poesia" e de que "mais importante do que os deuses existirem é acreditarmos neles".
Aliás, sempre me pareceu que, quando se diz "acredito em deus", deus está mais na palavra "acredito" do que na palavra "deus".
(Ou pode ser que esteja ainda mais lá na palavra "acredito" quando se diz "não acredito em deus". Deus está na dúvida, eis uma feliz formulação.)
A palavra "acredito" é o que nos faz mover. É por ela que peregrinamos. É por ela que o mundo está repleto de peregrinos.
A etimologia de peregrinação, per agros, pelos campos, designa essa demanda de um devoto rumo a um lugar sagrado.
São impressionantes as imagens de milhares e milhares de fiéis em peregrinações a lugares sagrados das várias religiões por diversas partes do mundo.
O caminho é o caminho da fé e a fé, como o caminho, faz-se, existe, caminhando.
Também no caso da peregrinação, gosto da ideia, mas não a de seguir estes caminhos das religiões instituídas. Agrada-me mais a peregrinação a lugares que não sejam oficialmente sagrados. Templos mais secretos, íntimos, pessoais, que só a cada um de nós digam respeito.
Tal como acontece com o mundo das hiperligações globais, também as deslocações em massa nunca foram tão comuns no planeta: carros, comboios, navios, aviões - permanentemente em movimento; pessoas em negócios, turistas, pessoas de um lado para o outro. Pessoas a pé, nas suas rotinas, no seu turismo. Ou refugiados. Massas de refugiados.
Vistos de cima, em imagens de satélite, não se adivinham os seus propósitos, as suas demandas e as suas derivas, são só seres humanos em movimento.
Em plano apertado, tão perto que podemos sentir a sua respiração, a nossa respiração, são todos, somos todos, desorientados peregrinos, consultando os nossos GPS existenciais à procura do sentido disto tudo.
"É uma peregrinação?... Mas em direção a quê?", perguntava a Laurie Anderson no seu último filme.
Se os deuses são da poesia, o seu mundo é o dos mitos e das histórias e o da nomeação inicial - da linguagem, do conto e do canto.
Bruce Chatwin escreveu no seu livro Songlines (O Canto Nómada) sobre os mitos aborígenes da Austrália que falam de seres legendários que atravessaram o continente no tempo do sonho, o tempo da criação, cantando tudo o que viam e, assim, dando existência ao mundo pelo meio do canto.
Esses cantos, passados de pai para filho ao longo de gerações, existem hoje como trilhos, rastos mitológicos, e constituem um labirinto invisível de caminhos que serpenteiam por todo o continente.
"Um canto... constituía um mapa e um indicador de direções. Desde que se soubesse o canto, podia-se sempre encontrar um caminho através do país."
O caminho sempre mais importante do que o destino. A canção mais do que a razão.