Cannes entra em modo punk

O retrato de Jean-Luc Godard por Hazanavicius é uma pobre coleção de caricaturas. Já o novo filme de John Cameron Mitchell veio reafirmar os sabores dos artifícios cinematográficos
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Subitamente, o filme de John Cameron Mitchell, How to Talk to Girls at Parties, veio introduzir uma nota dissonante no Festival de Cannes. Como? Celebrando o punk e, através da sua exuberância, o próprio cinema como fábrica de artifícios. Bem sabemos que por estas bandas os mais reproduzidos desses artifícios estão na passadeira vermelha: as estrelas passam, dezenas de fotógrafos empurram-se furiosamente (não é metáfora...) e as centenas de mirones gritam a plenos pulmões. Que resta disso tudo? Algumas belas fotografias, é verdade.

Mas há filmes que parecem procurar apenas o mesmo tipo de burburinho efémero. Por vezes, é verdade também, conseguindo gerar enormes expectativas. Assim aconteceu com Le Redoutable, adaptação do livro de Anne Wiazemsky (Un An Après) evocando a sua participação no filme La Chinoise (1967), de Jean-Luc Godard, o seu casamento com o realizador e, por fim, a amarga separação.

Não é fácil construir um retrato seja de quem for quando a personalidade retratada não suscita ao retratista qualquer curiosidade. Assim acontece com o realizador de Le Redoutable, Michel Hazanavicius, consagrado internacionalmente com O Artista (2011). O filme resume-se a uma colagem de caricaturas fáceis de Godard, a começar pela interpretação de Louis Garrel, para mais com Hazanavicius a "imitar" as imagens de vários dos seus filmes. Não se espera que Godard, cineasta de todas as experimentações e ruturas, suscite qualquer tipo de consenso - acontece que para se fazer um filme sobre ele importa ter alguma ideia de... cinema.

Embora mais elaborado, acontece algo de semelhante com outro titulo da competição: The Meyerowitz Stories (New and Selected), de Noah Baumbach, com um elenco de luxo que inclui Dustin Hoffman, Adam Sandler, Ben Stiller e Emma Thompson. Baumbach possui a escola do clássico melodrama de Hollywood, mas parece confundir a sua herança com a transformação das relações familiares numa parada de anedotas mais ou menos cínicas e deprimentes - é difícil ser-se humanista quando não há real interesse pela complexidade dos seres humanos.

Neste contexto, o filme de John Cameron Mitchell (extracompetição) distingue-se por uma diferença essencial: a capacidade de filmar não apenas as convulsões da vida, mas o desejo de viver. Assistimos a eclosão do punk em Inglaterra (em 1977, ano das comemorações de 25 anos do reinado de Isabel II), em contraste com as regras de uma comunidade de extraterrestres que visita o nosso planeta, rejeitando a possibilidade de os seus membros estabelecerem qualquer relação amorosa com os humanos...

Trata-se de uma adaptação da historia homónima do autor inglês Neil Gaiman (a edição portuguesa, com chancela Bertrand, intitula-se Como Falar com Raparigas em Festas). E o menos que se pode dizer é que os resultados, ainda que nem sempre totalmente controlados, possuem o mérito de reafirmar o cinema como qualquer coisa que, mesmo quando tende para o surreal, se revela capaz de conservar um realismo direto e contundente, por assim dizer a flor da pele.

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