Calma, descontração e estupidez funcional

Publicado a
Atualizado a

Há dias topei com uma publicação de um blogue brasileiro, meio de autoajuda, que usava a expressão "estupidez funcional". Lembrei-me logo de um lema que os adolescentes e jovens do meu tempo usávamos para definir o melhor modo de se dar bem na vida: "Calma, descontração e estupidez natural". A publicação fez tanto eco nas minhas cogitações que decidi verificar se haveria alguma fundamentação científica para o conceito e descobri que sim.

Em 2012, Alvesson e Spicer publicaram no Journal of Management Studies um artigo intitulado A stupidity-based theory of the organization ("Uma teoria das organizações baseada na estupidez"), que se tornou um interessante foco de discussão nos âmbitos da economia, gestão e liderança. O referido trabalho visa questionar a atual retórica que domina a gestão e o investimento em educação e formação, tão pretensiosa quanto glamorosa, de que as empresas prosperam com base no conhecimento, embora não seja consensual o que se entende por "conhecimento" neste contexto. Além disso, o artigo pretende dar corpo à evidência de que parte da ação de muitas instituições se caracteriza pela irracionalidade. Para isso, os autores propõem o conceito de "estupidez funcional" (EF), que pode ser resumidamente definido como carência de autoanálise, reflexão e justificação, e recusa da mobilização de recursos intelectuais fora de um limitado "terreno" seguro (i.e. rejeição do "pensamento fora da caixa"), ambas sustentadas institucionalmente. A EF tem a vantagem de permitir o funcionamento tranquilo das instituições, poupando-as a embaraços e constrangimentos provocados pela dúvida e pela reflexão, contribuindo para manter e reforçar a ordem, motivar as pessoas, ajudá-las a beneficiar as suas próprias carreiras e subordiná-las a formas socialmente aceitáveis de gestão e liderança. No entanto, a EF tem também consequências negativas, como aprisionar os indivíduos e as organizações em padrões de pensamento "único", que geram condições para a dissonância entre o indivíduo e a instituição, e levam a percecionar a autoanálise e a reflexão como perigos para a tranquilidade da organização, i.e. como entraves ao desenvolvimento da própria EF funcional.

Segundo os autores, o artigo traz três contributos interessantes para compreender o funcionamento atual de muitas organizações que conhecemos. Primeiro, obriga a repensar a assunção dominante de que as organizações funcionam sobretudo pela mobilização de capacidades cognitivas, mostrando, precisamente, que a negação do recurso a elas facilita o funcionamento tranquilo da organização. Segundo, torna mais cabal a compreensão dos limites da racionalidade e da reflexão nas organizações, ao permitir explicar de que forma o uso das capacidades cognitivas pode ser muito mais limitado pelas relações de poder e dominação do que pela falta de tempo e de recursos, ou por ideias obsessivas. Por fim, fornece uma explicação teórica para o que se considera ser um aspeto insidioso, mas não reconhecido, da vida das organizações, permitindo evocar e verbalizar experiências de investigadores, profissionais, cidadãos e consumidores, assim como compreender circunstâncias-chave das pessoas dentro das instituições.

Não tenho espaço para aprofundar a EF e suas repercussões, mas espero ter trazido um assunto que, embora pouco natalício, seja passível de originar um momento-heureca. 50 anos depois, descubro que, afinal, só o adjetivo estava errado no nosso lema de vida, que deve tornar-se "calma, descontração e estupidez funcional".

Boas festas!

Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt