Calistão, o sonho dos separatistas sikhs no centro da crise entre Índia e Canadá

Primeiro-ministro canadiano acusou autoridades indianas de estarem envolvidas no assassínio de um líder da comunidade sikh no país. Otava expulsou um alto diplomata indiano e Nova Deli respondeu na mesma moeda.
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Chegado ao Canadá em 1997 com 20 anos e um passaporte falso (segundo a imigração canadiana), Hardeep Singh Nijjar teve um negócio de canalizações e liderou um gurdwara, um templo sikh, em Vancouver. Foi nessa cidade que se tornou ativista na defesa do Calistão, um estado independente desejado por alguns seguidores desta religião nascida no século XV no Punjabe. Acusado de terrorismo pelas autoridades indianas - acusações que negava -, Nijjar foi morto a tiro em junho por dois homens encapuzados diante do templo que dirigia.

Foi nesse crime que o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, veio agora acusar o governo indiano de estar envolvido, alegando ter "informações credíveis" a sustentar as suas palavras. "Qualquer envolvimento de um Governo estrangeiro no assassínio de um canadiano em solo canadiano é uma violação inaceitável da nossa soberania", disse Trudeau na Câmara Baixa do Parlamento.

O chefe do governo canadiano explicou ainda que durante a cimeira do G20, realizada na Índia nos dias 9 e 10 de setembro, exigiu explicações ao seu homólogo indiano, Narendra Modi. "Da maneira mais forte possível, recomendo que o Governo da Índia colabore com o Canadá para chegar ao fundo desta questão", garantiu.

Em consequência desta investigação, o chefe dos serviços de informação indiano no Canadá foi expulso. E a ministra dos Negócios Estrangeiros Mélanie Joly afirmou: "Se for verdade, seria uma grande violação da nossa soberania e da regra mais básica de como os países lidam uns com os outros. Como consequência, expulsamos um importante diplomata indiano".

A resposta de Nova Deli não tardou. Considerando as acusações de Otava como "absurdas", as autoridades indianas retaliaram com a convocatória e consequente expulsão do alto comissário canadiano no país. A decisão de Nova Deli reflete a sua "crescente preocupação com a interferência dos diplomatas canadianos nos assuntos internos e o seu envolvimento em atividades anti-Índia", explicou o Ministério dos Negócios Estrangeiros numa nota.

A tensão entre a Índia e o Canadá tem vindo a subir desde o assassínio de Najjir, com Otava a apontar o dedo a Nova Deli e esta a não esconder o descontentamento com a forma como o governo canadiano tem lidado com os separatistas sikhs. Para Jocelyn Coulon, antiga conselheira de Trudeau agora investigadora independente as acusações do primeiro-ministro canadiano têm "o efeito de uma bomba", ao colocar a Índia "no grupo dos países que assassinam opositores políticos no estrangeiro".

Durante a sua deslocação à Índia no início do mês, para a cimeira do G20, Trudeau reuniu-se em privado com Modi, um encontro no qual terá abordado a morte de Najjir, mas no qual o primeiro-ministro indiano também terá aproveitado para expressar a sua "preocupação quanto às atividades anti-indianas de alguns elementos extremistas no Canadá", de acordo com um comunicado do governo de Nova Deli citado pela AFP.

Mas afinal que grupo separatista é este a que Najjir é acusado de pertencer?

Hoje os sikhs representam menos de 2% dos 1400 milhões de indianos, mas no Punjabe indiano os seguidores desta religião são 60% dos habitantes. No momento da partição da Índia Britânica, em 1947, a larga maioria dos sikhs optaram por ficar do lado de uma Índia independente multirreligiosa, em vez de ficarem num Paquistão, pátria dos muçulmanos, para evitar a perseguição religiosa.

Desde essa altura que um pequeno grupo de sikhs defende a criação do Calistão, uma "Terra dos Puros" que funcione como Estado independente governado pelos seguidores desta religião. Uma ideia que ganhou adeptos nas décadas seguintes à medida que o Punjabe se tornava num dos estados mais ricos da Índia. Mas o movimento independentista só ganhou contornos violentos nos anos 1980, com a ascensão do fundamentalista Jarnail Singh Bhindranwale. Carismático, Bhindranwale e os seus seguidores lançaram-se numa campanha que envolveu o assassínio de opositores políticos e de civis hindus. Em 1984 começaram a armazenar armas, tendo-se barricado no interior do Templo Dourado, o local mais sagrado para os sikhs, em Amritsar.

O protesto terminou quando o exército indiano, por ordem da primeira-ministra Indira Gandhi, filha do pai da independência indiana, Jawaharlal Nehru, atacou o templo, matando Bhindranwale, os seus adjuntos e centenas de civis, causando ainda danos ao edifício. A operação Blue Star gerou uma onda de indignação entre os sikhs um pouco por todo o mundo. E a própria Indira acabaria por ser assassinada por dois dos seus guarda-costas sikhs. Seguiu-se uma repressão brutal que levou a muitas mais mortes. Com os separatistas a serem acusados de, em junho de 1985, fazer explodir um Boeing da Air India que fazia a ligação entre Montreal, no Canadá, e Nova Deli, matando as 329 pessoas a bordo.

Mas a rebelião acabou por ser controlada e a Índia até já teve um primeiro-ministro sikh, Manmohan Singh, que esteve no cargo entre 2004 e 2014, tendo sido sucedido por Modi.

Mas se na Índia o movimento separatista tem estado praticamente silenciado é entre a diáspora que encontra as suas vozes mais fortes, sobretudo no Reino Unido, Austrália e Canadá. Este último tem a maior comunidade sikh fora da Índia - mais de 770 mil pessoas. Esta crise com Otava vem mostrar que apesar de tudo o separatismo sikh ainda é uma preocupação para Nova Deli, que se tem queixado a alguns países em relação às atividades de extremistas.

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