'California Leaving'. Há mesmo um êxodo do Estado mais populoso da América?

Dados mostram que a Califórnia perdeu milhares de habitantes pela primeira vez na história e crescimento da população vai estagnar durante décadas. Porquê?
Publicado a
Atualizado a

Quando a primeira filha de Marisa e Hildebrando Rocha era ainda bebé, o casal de luso-americanos começou a falar de deixar a Califórnia e rumar ao Idaho, que nunca tinham visitado mas estavam a explorar à distância. A vida em São José, no coração de Silicon Valley, estava cara e a jovem família ponderava uma mudança.

"Estas cidades querem habitantes influentes, com bons empregos, que dão bom dinheiro", disse ao DN Marisa Silva Rocha. "Nunca o dirão, mas querem mandar os locais e a classe média embora", considerou.

A ideia de ir para o Idaho acabou por descarrilar por causa da pandemia de covid-19 e o que se seguiu foram tempos difíceis. Desempregados e com despesas elevadas, Marisa, Hildebrando e a filha pequena mudaram-se antes para Hilmar, uma cidadezinha interior no vale central da Califórnia onde também existe uma grande comunidade portuguesa.

"Decidimos mudar porque perdemos o emprego durante a pandemia e a nossa renda era 2400 dólares por um espaço pequeno", contou a lusodescendente. "Sendo nós uma família nova, pareceu-nos uma ideia melhor, especialmente porque quase todo o nosso dinheiro ia para a renda e ainda tínhamos de sobreviver, pagar gasolina e comida."

Na nova localidade encontraram uma casa grande com quintal por metade da renda. E em agosto de 2021, cinco meses depois da mudança, compraram a sua própria casa. Depois tiveram uma segunda filha. Agora vivem um sonho que Marisa acredita que nunca teriam conseguido alcançar em São José.

Os preços exorbitantes da habitação nas zonas metropolitanas, de Sacramento e São Francisco a Los Angeles e San Diego, são uma das principais causas da hemorragia de população que estas cidades estão a sofrer. Muita gente muda-se para zonas mais interiores, como Marisa e a família, mas tantos outros decidem mesmo abandonar a Califórnia completamente. Isto é algo que Marisa tem visto nos últimos tempos. "Muita gente da Califórnia está a mudar-se para o Idaho", sublinhou. "Conheço muitos californianos que se mudaram para o Texas, Arizona e Idaho. São esses os três Estados para onde muitas pessoas que conheço se mudaram."

As estatísticas pintam esse retrato e mostram que a população da Califórnia está, de facto, a diminuir. É uma situação desconcertante para o Estado mais populoso dos EUA e que, em toda a sua história, foi um íman que atraiu gente vinda de todo o lado. Mais de um século de crescimento imparável travou a fundo nos últimos três anos, com uma perda sequencial que se mantém em 2023 e já está a moldar o futuro de uma forma inesperada.

Foi isso que disse o Departamento Financeiro do governo da Califórnia, com uma revisão em baixa que há poucos anos era inimaginável: o crescimento populacional que era esperado para as próximas décadas esfumou-se. Agora, o modelo do departamento aponta para uma estagnação prolongada. Em 2060 a Califórnia deverá ter em torno de 39,5 milhões de habitantes, pouco mais de meio milhão que hoje. É uma revisão estonteante quando olhamos para o que eram as previsões há pouco tempo: em 2020 a projeção era de 45 milhões e em 2013 a estimativa era de 53 milhões. Esta moderação das expectativas obedece à realidade espelhada nas estatísticas.

De acordo com o gabinete responsável pelo recenseamento, o U.S. Census Bureau, nos dois anos entre abril de 2020 e julho de 2022 a Califórnia perdeu meio milhão de habitantes, invertendo décadas de crescimento imparável.

O movimento descendente, que ficou conhecido como "êxodo da Califórnia" em 2021, voltou a aparecer nos números do departamento financeiro do governo da Califórnia. Em 2022, a população do Estado americano recuou 0,35%, ou o equivalente a 138-400 pessoas.

Estes dados podem ser interpretados por ângulos opostos: os críticos apontam para eles como evidência de que as coisas estão mal e por isso há uma contração populacional; os oficiais sublinham que se trata de uma melhoria em relação ao ano anterior, em que a quebra tinha sido de 0,53%. Ou seja, a queda continua, mas está a abrandar e não a acelerar.

A pandemia de covid-19 foi o catalisador para a primeira redução populacional da história da Califórnia. A trabalhar remotamente ou sem emprego, muitos abandonaram as cidades com custos de vida mais elevados, como São Francisco e Los Angeles - onde o desemprego chegou a atingir 45% da população no pico da pandemia. As medidas draconianas do governo estadual para combater a crise sanitária também causaram revolta, por exemplo, entre empresários impedidos de manter os negócios a funcionar. Foi nessa altura que o CEO da Tesla, Elon Musk, decidiu mudar a sede da empresa para o Texas.

"Assistimos a um aumento das saídas da Califórnia durante a pandemia, há aqui algo muito real com residentes a deixarem o Estado", disse ao DN Ryan Lundquist, analista do mercado imobiliário sediado em Sacramento.

Todavia, os motivos por detrás daquilo que os conservadores apelidam de "cal-exit" são mais complexos e estruturais do que os problemas trazidos pela pandemia. Antes disto já havia um fluxo de saídas: pelo menos desde o ano 2000 que muitos residentes começaram a sair da Califórnia em direção principalmente ao Nevada, Texas e Washington.

Em causa está sobretudo o custo e a qualidade de vida. O preço das rendas é extremamente elevado, há escassez na oferta de habitação, as medidas para combater a crise das pessoas em situação de sem-abrigo não têm funcionado, a Califórnia tem dos impostos mais pesados do país e regulações (por exemplo ambientais) mais rígidas do que as de outros Estados.

"Um dos problemas do imobiliário é a acessibilidade. Apenas 20% dos lares em todo o Estado conseguem pagar o preço médio de uma casa, segundo a Associação de Mediadores da Califórnia, pelo que muitas vezes as pessoas deixam o Estado para irem para pastos economicamente mais verdejantes", explicou Ryan Lundquist.

Em Sacramento, o analista vê saídas para Estados como o Tennessee, Arizona, Idaho, Nevada e Oregon. "Suspeito que muitos residentes locais conhecem múltiplas pessoas que abandonaram o Estado, por isso a tendência parece-lhes bastante real." No entanto, o especialista mostrou-se cauteloso quanto à classificação do fenómeno como um êxodo. "Definitivamente, há residentes a deixarem a Califórnia, mas é provável que a tendência esteja a ser exagerada", considerou.

"De acordo com o Instituto de Política Pública da Califórnia, uns incríveis 7,7 milhões de residentes abandonaram o Estado entre 2010 e 2021. Este é um número estonteante, mas ainda assim cerca de 5,8 milhões de pessoas chegaram no mesmo período", vincou.

Na verdade, enquanto muita gente saiu da Califórnia em 2022, também houve um aumento do número de imigrantes a chegar, com um regresso aos níveis verificados antes da pandemia.

Ou seja, há um fluxo constante de entradas e saídas. "As pessoas ficam surpreendidas por saberem que há gente a mudar-se para a Califórnia, porque a narrativa proeminente é de que toda a gente está a ir-se embora", salienta Lundquist. "Não digo isto para envernizar a realidade de que há uma perda populacional ou a perda de um assento no Congresso em anos recentes, mas a narrativa de que toda a gente está a ir-se embora não se confirma sempre."

DestaquedestaqueSão Francisco, o grande centro no Norte da Califórnia, perdeu 7,1% dos residentes entre 2020 e 2022 muito por causa dos preços elevados e da quantidade de profissionais de empresas tecnológicas que foram trabalhar remotamente para outro lado.

Esta perda no Congresso referida pelo especialista aconteceu em 2021, quando a Califórnia passou de 54 para 53 assentos na Câmara dos Representantes por causa da inversão do crescimento da população detetada pelos Censos que foram realizados durante a covid-19. É possível que haja mais consequências pelo caminho, à medida que o Estado se ajusta a uma nova realidade de crescimento estagnado - para a qual também contribui o declínio da taxa de fertilidade.
O que não está a verificar-se, para já, é um alívio de problemas como tráfego ou escassez de habitação, algo que se poderia esperar perante um verdadeiro êxodo, como sublinha Lundquist.

"Ironicamente, os californianos não estão a ver rendas mais baixas, menos tráfego ou mais casas disponíveis devido a um êxodo, pelo que é bom lembrar que ainda somos o Estado com maior população e um êxodo não ajudou a aliviar as coisas em termos económicos para os residentes que continuam no Estado." A renda média de duas assoalhadas em Los Angeles, por exemplo, é 2400 dólares por mês. E, embora o Estado tenha adicionado 123.350 novas unidades em 2022, isso continuou a não ser suficiente para saciar a procura.

As movimentações dentro dos EUA foram exacerbadas pela turbulência da pandemia e geraram efeitos migratórios pronunciados. Segundo os dados do U.S. Census, os Estados de Idaho (+4,9%), Montana (+3,3%) e Florida (+3%) foram os que registaram maior aumento da população entre 2020 e 2022. A surpresa é que a Califórnia não está sequer no topo dos que sofreram maior contração: foram Nova Iorque (-2,1%), Illinois (-1,6%) e Luisiana (-1,3%) que tiveram os maiores êxodos.

O chamado "cal-exit" terá ganho destaque por causa da visibilidade do abandono de São Francisco em particular. O grande centro no norte perdeu 7,1% dos residentes, muito por causa dos preços elevados e da quantidade de profissionais de empresas tecnológicas que foram trabalhar remotamente para outro lado. Já Los Angeles, no sul, sofreu uma redução de 2,7%.

E ainda assim houve zonas com números ainda piores. Terrell, no Texas, perdeu 7,6% dos seus residentes, enquanto Williams, no Dakota do Norte, contraiu 7,5%. Cameron, no Luisiana, recuou 12,8%. Dezoito Estados viram a população reduzir-se nos últimos três anos.

O Estado mais populoso dos EUA é também aquele que alberga a maior comunidade luso-americana, com perto de 350 mil pessoas de origem portuguesa. Há uma grande concentração em zonas como São José e San Diego e ainda maior no vale central, para onde a lusodescendente Marisa Silva Rocha se mudou com a família. É precisamente aqui que se encontram vários dos poucos condados da Califórnia que viram aumentar a população entre 2020 e 2022. O condado de Merced, onde se encontra a cidade de Hilmar, aumentou a população em 2,9%, enquanto Madera cresceu 2,5% e Fresno 0,6%.

É isso que tem visto Diniz Borges, professor na Universidade Estadual da Califórnia, em Fresno, e presidente do Instituto Português Além-Fronteiras (PBBI, na sigla inglesa).

"No vale, algumas comunidades têm tido algum crescimento por motivo de pessoas que estão a abandonar as zonas mais metropolitanas, particularmente ao reformarem-se", disse o responsável. "Para Tulare, para a zona sul do vale, temos várias pessoas de Chino, de Ontário e até de Artesia. A parte norte do vale, Turlock, Hilmar, Manteca, tem recebido muita gente da área da baía, nomeadamente Silicon Valley e as zonas a leste."

Muitos estão a entrar na reforma e conseguem vender as casas por um milhão de dólares ou mais. Depois, compram uma casa maior por 400 ou 500 mil dólares no interior e ainda ficam com dinheiro para investimento. No caso de famílias mais jovens que conseguem ficar em teletrabalho, a mudança permite-lhes maior qualidade de vida com menores custos.

O professor Diniz Borges considera que, em termos da comunidade portuguesa, há menos um êxodo para fora da Califórnia que saídas pontuais, embora estas existam. "Na agropecuária é [uma saída] para os Estados onde os regulamentos não são tão exigentes como os da Califórnia", referiu. "Tem havido algumas saídas para Idaho e Texas", continuou. "O Estado da Califórnia tem cada vez mais regulamentos para a agropecuária e esses outros Estados não são tão severos. Mas não tem sido um êxodo."

Qualquer que seja a designação, as saídas são também mencionadas por Ângela Simões, lusodescendente e ex-chairman do Conselho de Liderança Luso-Americano, que se mudou com a família de Fremont (área da baía) para Livermore (zona mais interior). "Tenho visto isto na comunidade aqui", indicou. "Pessoas a mudarem-se para o Idaho, Texas, Oregon, Arizona, até para Portugal." Isso foi uma coisa que a sua família discutiu durante muito tempo antes de se mudarem para Livermore, estando agora a ponderar esperar que a filha termine a escola antes de uma decisão.

Ângela Simões referiu que os motivos para quem deixa a Califórnia se centram no custo de vida e várias políticas estaduais, desde as que são relativas aos sem-abrigo até à gestão da educação.
O governador, Gavin Newsom, continua a ter níveis de popularidade positivos, mas as vozes contra têm aumentado de tom, criticando a gestão da crise da habitação, inflação e outras. Newsom, numa rara aparição na Fox News, defendeu-se sublinhando que 18 Estados sofreram reduções da população e que a Califórnia é o "templo" da economia americana, com um crescimento de 7,8% em 2021.

"Adoro este Estado", declarou. "Não nos descartem."

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt