Com um novo disco e uma digressão que irá passar por Portugal, Caetano Veloso recorda um dos maiores mitos musicais do Brasil: o tropicalismo. Que completou meio século de idade e ainda não perdeu a atualidade enquanto mensagem social e política, nem deixou de provocar influências no mundo da música daquele país. Os espetáculos em Portugal acontecem em julho e agosto e têm a particularidade de reunir em palco Caetano e os filhos, Moreno, Zeca e Tom..Passam 50 anos e um jornal do outro lado do Atlântico faz duas páginas sobre um disco - e um movimento. Na altura, sentiam-se a fazer história?.Queríamos urgentemente retomar o aspeto rebelde da bossa nova e não continuar a imitar suas aparências estilísticas. Também produzir uma arte que expressasse a violência da situação que vivíamos no Brasil, conectando--nos com a onda contraculturas que, concomitantemente, explodia no mundo. Acho que não pensávamos na figura que faríamos na história futura..Os media brasileiros registaram o nascimento do tropicalismo no ano passado, a propósito do festival de 1967. O DN assinala-o no momento da gravação do disco símbolo. Que momento considera o original?.Também sou brasileiro: em 1967 cantei Alegria, Alegria com uma banda de rock num festival de TV, gravei o meu primeiro álbum a solo que contém essa canção, além de Tropicália, Eles, Superbacana, enfim, canções que tipificam o movimento. Nesse mesmo ano assisti a O Rei da Vela, peça do modernista Oswald de Andrade, na montagem do Teatro Oficina, que me pareceu confirmar o que buscávamos e que já estava no meu disco. Decididamente em 1967. Se há um momento preciso, este é o lançamento de Alegria, Alegria e de Domingo no Parque, por Gil, no Festival da Canção, em São Paulo, creio que em outubro daquele ano.."Sem Caetano, o tropicalismo não existiria", disse Gilberto Gil. Sente que foi, de facto, o pilar do movimento?.Posso igualmente dizer que sem Gil o tropicalismo não existiria. Foi ele quem começou a falar em olhar para os Beatles, responder com alguma violência poética à violência que sofríamos, ouvir a banda de pífaros de Caruaru, reouvir Luiz Gonzaga, etc. Eu já vinha tendo conversas com Rogério Duarte sobre Edgar Morin e a mitologia de Holly-wood e ouvi de Bethânia o conselho de ficar atento a Roberto Carlos e à vitalidade do pop ingénuo. Mas quem falou em fazer algo como um movimento foi Gil. Acontece apenas que, uma vez as coisas feitas, eu era sempre mais inclinado a articular argumentos e explicações..Não sente que a música Tropicália está ainda muito atual?.Sinto. Quando a cantei com Gil, faz pouco mais de um ano, achei que falava de coisas de agora. E no mês passado fui ver a exposição de Tarsila do Amaral no MoMA de Nova Iorque e dei--me conta de que essa canção se parece com a tela Abaporu - que é dos anos 1920 e foi o que inspirou Oswald a escrever o Manifesto Antropófago. Tropicália, que nunca sequer me pareceu uma canção bonita, surge-me agora como algo duradouro, algo que responde às dificuldades com que o Brasil se depara e para as quais ainda não encontrou os meios para as superar..Como foi o encontro de baianos, como Caetano e Gil, e a mais completa tradução de São Paulo, a Rita Lee. Foram momentos loucos, de criação, de drogas, de festas, como se imagina, ou nem tanto?.O encontro com os Mutantes foi crucial para nós. O maestro Rogério Duprat pôs-nos em contacto com eles. Arnaldo era um pesquisador e condutor inspirado e inquieto. Seu irmão Sérgio - ainda na adolescência - era um génio da guitarra. Mas Rita sempre nos pareceu, a Gil e a mim, a figura com que mais a gente sentia identificação e para quem prevíamos um futuro de êxitos, o que veio a se cumprir. Não havia drogas nem festas, apenas frequentes encontros em meu apartamento de São Paulo, para conversar, planear e comentar coisas. Rita era uma menina extremamente bonita e era namorada de Arnaldo. A gente nem dizia palavrão na frente dela..O tropicalismo, no papel, teve uma vida curta: ou acha que, por ser tão diverso e tão inspirador, ainda vive sob a capa de outros géneros? Se sim, quais: o funk carioca?.A capacidade de aceitar criticamente e acompanhar esteticamente o funk que se produziu nas favelas cariocas é algo que seria impensável se não tivesse havido o tropicalismo. O mesmo serve para o axé do carnaval baiano e até para o pop sertanejo do Centro-Oeste. Quanto à inspiração sobre criadores, bem, quase todos da nossa geração (e Chico Buarque, também nisso, na frente) souberam nadar nas águas que libertámos das velhas barragens. O originalíssimo fusion dos mineiros dos anos 1970, os pioneiros do neo rock vindos do Ceará um pouco depois e os roqueiros dos anos 1980 não teriam encontrado o ambiente recetivo que encontraram. O próprio Raul Seixas, nosso contemporâneo, tampouco acharia o lugar que achou no mercado e na crítica. Mas nenhum deles é seguidor ou imitador do tropicalismo. Hoje, vejo traços de aspetos profundos do tropicalismo na obra de um Thiago Amud, por exemplo..A música hoje já não é tanto um instrumento político como naquela época. Ou ainda é?.Discussões políticas estão na moda no Brasil agora. Muitos artistas manifestam-se, inclusive com um grupo relevante de músicos populares à direita. A maioria ainda tende para a esquerda, mas os da direita têm sido mais vocais. Por enquanto tudo se passa em posts nas redes sociais, em blogues e em entrevistas. Quem sabe de repente algumas canções saem daí?.A conjuntura política - ditadura militar, guerra fria, Vietname - é o cenário, até motivação, do tropicalismo. O Brasil e o mundo estão muito melhores hoje mas ainda assim há Trump, há o assassínio de Marielle, há a prisão do primeiro pobre eleito presidente. São dias sombrios para o país?.São dias bastante sombrios. Mas a reação ao assassínio de Marielle mostra uma união da maioria da população brasileira. Muitos dos jovens ingénuos que saem às ruas contra Lula e o PT, revoltam-se contra o que aconteceu com Marielle. Em dois espetáculos recentes eu gritei "Lula livre" e as plateias dividiram-se entre aplausos (imediatos) e vaias (retardadas, mas duradouras); quando eu disse "Marielle vive" o longo aplauso foi unânime..Tropicalismo faz 50 anos, mais atual do que nunca.Há 50 anos, um grupo multicolor de jovens brasileiros cabeludos, excessivo, às vezes debochado, derrubou os muros que separavam o luxo do lixo através do disco Tropicália ou Panis et Circencis, o manifesto definitivo do tropicalismo, movimento que reuniu música pop e concretismo, guitarra elétrica e berimbau, brega e psicadélico, muita criação e nenhum preconceito.."A tropicália rompeu com a separação radical entre o erudito e o popular, representou a libertação de todas as possibilidades na música brasileira", resumiu o poeta e compositor Antônio Cícero. "Os tropicalistas buscavam uma cena que fosse um pouco mais aberta, com menos preconceitos e mais liberdade de criação. Não existia uma forma tropicalista de fazer música, existiam várias, do rock à música caipira, da marcha ao baião", afirmou Carlos Calado, autor do livro Tropicalia - A História de Uma Revolução Musical..Quando nasce o tropicalismo? Muitos, incluindo Caetano Veloso, talvez o seu expoente, consideram o 21 de outubro de 1967 (ler entrevista à esquerda), quando meio Brasil parou para assistir na TV Record à terceira edição do Festival de Música Popular Brasileira, um fenómeno de popularidade na época, ao jeito do Festival da Canção português. Entre os concorrentes, Edu Lobo, que venceria com a canção Ponteio, Chico Buarque, cuja Roda Viva foi terceira classificada, Roberto Carlos, Elis Regina e outros astros em embrião. Mas foram a segunda e a quarta classificadas, Domingo no Parque, de Gilberto Gil, e Alegria, Alegria, de Caetano, que tiveram o privilégio de lançar as bases para um movimento..Em fevereiro de 1968, o crítico Nelson Motta anunciava o nascimento nas páginas do jornal Última Hora: "Um grupo de cineastas, jornalistas, músicos e intelectuais resolveu fundar um movimento brasileiro mas com possibilidades de se transformar em escala mundial: o tropicalismo. Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estática, sem cogitar cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ele encerra, ainda desconhecido." E no rescaldo daquele texto, o poeta Torquato Neto, um dos integrantes de Tropicália ou Panis et Circensis lançou Tropicalismo para Principiantes, um breviário do movimento. "Mas a moda não deve pegar e os ídolos continuarão os mesmos, Beatles, Marylin, Che e Sinatra", lamentava-se..O movimento, que transcendeu a música, terá começado antes, defende o professor universitário Frederico Coelho, para quem "[Hélio] Oiticica já o vinha construindo nas artes plásticas desde os anos 50". Depois, houve a conjuntura propícia nacional e internacional: "A passagem da euforia desenvolvimentista no país para a ditadura militar e o Vietname, a Guerra Fria, a arte diagnosticou a crise."