Caetano ataca Gil em carta aberta

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O que a música une, a política separa. Caetano Veloso e Gilberto Gil, amigos do peito desde que desceram juntos lá da Bahia, na década de 60, para conquistar o Rio de Janeiro e a MPB com a sua energia tropicalista, andam de candeias às avessas devido a um dos mais polémicos "casos" em que Gil, na qualidade de ministro da Cultura escolhido pelo presidente Lula da Silva, se envolveu nos últimos tempos.

A tensão atingiu o clímax na quinta-feira, quando Caetano publicou uma carta aberta, no jornal Folha de São Paulo, em que acusa de intolerância a equipa governativa do antigo companheiro de palco "Se um ministério demonstra não aceitar críticas - pior: exige adesão total às suas decisões -, estamos a um passo do totalitarismo".

Mesmo não sendo Gilberto Gil o alvo directo da crítica, que se dirige explicitamente a Sérgio Sá Leitão, secretário de Políticas Públicas do Ministério da Cultura, o certo é que o autor de Domingo no Parque não deixa de ser atingido pela violenta missiva de Caetano, cuja tristeza e desilusão com a política cultural do Governo é extensiva a muitos outros artistas brasileiros.

A origem desta polémica esteve em declarações do poeta Ferreira Gullar, a 21 de Dezembro, segundo as quais estariam a surgir "reclamações em diferentes áreas" sobre uma crescente "centralização" das actividades do Ministério da Cultura (MC). Sentindo-se visado, Sérgio Sá Leitão respondeu, três dias depois, de forma contundente "Não deixa de ser curioso um comunista criticar algo ou alguém por uma suposta 'centralização'. A 'centralização' não era a marca registada dos finados regimes estalinistas de que Gullar foi e segue sendo um defensor?"

A pergunta provocatória do secretário de Políticas Públicas do MC incendiou os ânimos da comunidade artística brasileira, que em grande parte cerrou fileiras em torno de Gullar. Cerca de 30 figuras de prestígio - entre as quais o arquitecto Oscar Niemeyer, a actriz Fernanda Montenegro e o escritor João Ubaldo Ribeiro - assinaram um manifesto em que se pede a demissão de Sá Leitão.

A crítica mais feroz, contudo, foi mesmo a que Caetano lança na sua carta "O Ministério da Cultura é governo, ministérios são braços do executivo, suas aprovações ou desaprovações são oficiais. Um poeta não pode expurgar um governo. Governos totalitários são viciados em expurgar poetas".

É certo que Caetano, talvez para não hostilizar completamente o ministro, adoçou o seu ataque com um apelo à fraternidade "Gilberto Gil é meu irmão, meu amor, meu companheiro de viagem - não pode deixar de observar esses aspectos da questão". A exigência de medidas contra o secretário, essa, é bastante explícita. Envolvido na promoção da Copa da Cultura, um mega-evento que o MC quer levar a cabo na Alemanha, em paralelo com o Campeonato Mundial de Futebol, Gilberto Gil ignorou a carta de Caetano. "Não li", disse o ministro, "mas se é a cabeça de Sá Leitão que querem, não vão ter".

Para o responsável pelas Políticas Públicas do MC, que entretanto recebeu o apoio de 184 agentes culturais (mas nenhum deles com relevo mediático), o problema prende-se com a resistência das elites à chamada "descentralização" o fim de um regime que favoreceria os pedidos de financiamento apresentados pelos artistas mais conhecidos. "Essas pessoas não se conformam com regras republicanas e tratamento democrático, porque agora elas são tratadas como todos os outros produtores culturais deste país", afirmou Sá Leitão.

* Com Sérgio Barreto Mota, Correspondente no Rio de Janeiro

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