Há dois ou três dias que a Fugidia não aparecia. Havia uma razão nobre para esta ausência: a cadela, que pertence à matilha da Arrábida, pariu uma ninhada e permaneceu junto dos filhotes em vez de acompanhar os outros cães quando vão à procura de alimento. A matilha aparece à noite, já se habituou a que Sílvio Carvalheira lhes leve comida a uma hora certa. Mas Fugidia tinha fome, estava fraca por ter parido e amamentar, que naquele dia se viu obrigada a descer a serra para ir comer ainda à luz do dia. Comeu rapidamente do preparado de ração e voltou a meter-se no mato, para junto dos companheiros e dos seus cachorros.."Dei-lhe este nome porque não se deixa apanhar, nunca lhe toquei", conta Sílvio Carvalheira, 35 anos, que há cerca de três meses vai alimentar a matilha de 17 cães (que atualmente tem três ninhadas), e está a colaborar com a Câmara de Setúbal para encontrar uma solução para estes cães. Isto quando há relatos, sobretudo nos grupos de Facebook de Setúbal, que dizem que os animais são perigosos e descem à cidade para dizimar colónias de gatos. Há quem fale em ataques a pessoas, mas a autarquia não tem qualquer registo oficial..Foi por acaso, numa dessas incursões da matilha na Avenida Luísa Todi, que Sílvio Carvalheira deu de caras com o problema - até ali não sabia da existência da matilha. Naquela noite em que tinha ido beber uns copos com os amigos, viu um grupo de jovens a quererem bater nos cães, que tinham ido em busca de comida.."Seja pessoa ou seja bicho, quando alguém está a ser maltratado, eu meto-me", conta o agora diretor hoteleiro que esteve nove anos na Marinha. "Eram 11 ou 12 cães e impõem respeito. Estes cães ladram, mas se as pessoas se aproximam fogem.".Sílvio meteu-se na confusão. "Vão-se embora, eu conheço os cães", disse aos miúdos. E a sua primeira reação foi pedir a uma amiga para tentar segurar os bichos enquanto ele ia buscar ração da sua cadela para dar aos animais..Andar pela serra à procura dos cães."Dois ou três dias depois, vi no Facebook que os cães andavam a atacar na praia de Albarquel e na cidade e lembrava-me era de cães que estavam a ser atacados. Estava de férias e pensei "vou levar isto avante" e comecei a andar pela serra à procura deles e descobri que a serra é muito maior do que eu achava", conta..Até que os encontrou. "Senti-me intimidado, apareceram 18 cães [um foi entretanto encontrado morto], eram mais do que o grupo que eu tinha visto na cidade.".Aos poucos, Sílvio foi ganhando o respeito e o afeto dos animais. Agora, quando o vê, a matilha desce feliz, todos os cães a abanarem o rabo. "Percebi que não eram agressivos, tinham era fome." Mas mesmo assim aconselha cuidado a quem não os conhece, sobretudo que não se façam movimentos bruscos porque eles podem reagir a pensar que estão a ser atacados..A Câmara de Setúbal está a trabalhar para resolver o assunto, mas admite que as atuais condições do canil municipal não são adequadas aos cães assilvestrados e está a realizar obras de ampliação no sentido de criar um espaço adequado às características destes animais errantes..A prova é que entretanto foram capturados três cães da matilha da Arrábida que acabaram por fugir do canil e regressar ao grupo. São bichos que vivem em grupo e estão habituados a andar livremente pela serra, a correr e a saltar, e para os quais as redes de um canil não constituem qualquer obstáculo..Além disso, aponta Sílvio Carvalheira, o método que o Centro de Recolha Oficial de Animais de Companhia (CROAC) utiliza para capturar os animais não é eficaz. "Têm 15 armadilhas pequenas e quando um cão cai na armadilha os outros apercebem-se e fogem, não se aproximam mais", critica o homem que todos os dias vai alimentar a matilha à Arrábida e que ganhou uma espécie de estatuto de criador atribuído pela câmara..Capturar os animais antes da época balnear."A filosofia de alojamento terá de ser diferente, um campo aberto, compatível com o porte destes animais e onde tenham espaço suficiente para poderem fazer algum exercício", concorda Carla Guerreiro, vereadora com o pelouro do Ambiente, acrescentando que esse espaço destinado apenas às matilhas terá de ter as vedações reforçadas..A vereadora, juntamente com Sílvio, já se deslocou a Sintra para se inteirar da solução que aquela autarquia está a adotar, com sucesso, para os cães assilvestrados da região..Neste momento, sublinha Carla Guerreiro, a preocupação prende-se com a captura dos animais, que, aponta, deverá acontecer antes da abertura da época balnear, quando se pretende que as obras de alargamento do canil municipal estejam finalizadas - a matilha circula entre a praia de Albarquel e a fábrica da Secil, uma zona muito frequentada no verão e é preciso precaver qualquer tipo de incidentes.."Não há registo de ataques a pessoas, nem de comportamentos agressivos, mas recomendamos que não facilitem", alerta a vereadora..Canil em obras para acolher matilha.A intenção da Câmara de Setúbal é, pois, capturar os cães o mais rapidamente possível, mal as obras do canil estejam prontas e possa acolher, de uma forma faseada, 80 animais. O espaço está agora lotado com 35 bichos. Depois de capturados, os cães deverão ser esterilizados e entrar num programa de adoção. Nem todos, pelos hábitos selvagens que desenvolveram, conseguirão adquirir as valências que lhes permitam ser adotados e terão de ficar no canil - a nova lei proíbe que sejam abatidos. Daí a necessidade de ser criado um espaço aberto, que permita a estes animais, organizados e habituados a sobreviver em grupo, possam vir a ter uma vida saudável..Muitos dos cães da alcateia da Arrábida já terão sido animais de companhia antes de serem abandonados, daí estarem habituados à presença humana e alguns serem recuperáveis para adoção. Mas nas matilhas, explica o bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários, acabará por haver um pouco de tudo porque, não sendo controlados, vão-se reproduzindo e muitos nascem já em meio selvagem. "Sem qualquer contacto humano, o problema da agressividade vai-se exacerbando", alerta Jorge Cid..O bastonário não tem contemplações. "A lei é muito clara: estes animais não podem andar na via pública, terão de ser recolhidos. Este é um problema dos municípios e do Estado em geral e deve haver dotações do Orçamento do Estado para as autarquias que obvie a que este problema se agrave.".A questão, refere, é que mesmo as autarquias que tentam recolher estes animais não têm espaços adequados às suas características..Um problema de todos e uma questão de saúde pública.Jorge Cid faz ainda questão de alertar que a existência de matilhas levanta uma questão de saúde pública - além da possibilidade de atacarem - nos meios rurais atacam sobretudo rebanhos -, estes animais assilvestrados podem transmitir doenças. "Se são errantes, não estão sujeitos à profilaxia da raiva, são autênticos reservatórios de doenças."."Este é um problema de toda a sociedade e tem de ser encarado de raiz. Não pode ser cada município a resolvê-lo à sua maneira, tem de ser de resolução nacional", refere o bastonário. Por isso, logo a seguir à aprovação da lei que proíbe o abate de animais errantes, a Ordem dos Médicos Veterinários propôs a criação de um grupo de trabalho que junte especialistas para estudar medidas a adotar - "é preciso haver vontade política, em vez de se estar a assobiar para o lado"..Foi também por entender que este é um problema de todos que Sílvio Castanheira decidiu abdicar de muitas horas do seu tempo - e também de dinheiro - para todos os dias ao final da noite ir alimentar a matilha da Arrábida. Uma frase que ouviu na reunião de câmara, onde inicialmente foi expor o assunto, incomodou-o. "Alguém disse "esses cães não são de ninguém". Não é verdade, estes são os cães de todos, cada um tem responsabilidade como eu tenho. Se forem abandonados por todos é porque estamos a fazer algo errado.".Por isso, pede que todos colaborem - até que seja encontrada uma solução autárquica definitiva, é preciso levar comida aos cães. Sílvio solicita à população que entregue patés no Bar Taifa, na Avenida Luísa Todi, que depois junta num preparado com trinca ou ração. Só na semana passada gastou 38 euros em comida e uma amiga mais de 70 euros - os cães comem cerca de meio quilo de alimento diário. A isto junta outras despesas com medicamentos para tratar os animais, como por exemplo o Clorocil para a conjuntivite de Scar..Desde que há três meses encontrou a matilha, Sílvio desenvolveu uma forte relação com os cães. Eles conhecem-no e ele deu-lhes nomes a todos - há o Pai (o líder da matilha), o Scar, o Rui que é o seu preferido "e que vira o dente", as fêmeas Mãe, Preta e Fugidia que estão a cuidar das suas ninhadas....Lei proíbe abate de animais errantes.A lei que proíbe o abate de animais errantes como medida de controlo da população privilegia a esterilização. Entrou em vigor em setembro de 2018 no continente, apesar de ter sido aprovada dois anos antes, para dar tempo a que as autarquias se adaptassem, já que o diploma estabelece a criação de uma rede de centros de recolha oficial de animais e a modernização dos serviços municipais de veterinária..A lei considera que os animais acolhidos pelos centros de recolha oficial que não sejam reclamados no prazo de 15 dias, a contar da data da sua recolha, estão abandonados - assim, são obrigatoriamente esterilizados e encaminhados para adoção, sem direito a indemnização dos donos que venham a identificar-se como tal após o prazo previsto..Reportagem publicada originariamente na edição impressa de dia 21 de dezembro