Cacique Dadá Borari: "Desmatar a Amazónia é acabar com a cultura daqueles povos"

O Cacique da terra indígena Maró, no estado de Pará, na Amazónia esteve em Lisboa esta semana para a Digital With Purpose Global Summit. Esta cimeira recebeu mais de 300 líderes mundiais para encontrar soluções para a biodiversidade, a educação e as cidades.
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Durante os quatro anos em que Jair Bolsonaro esteve à frente do governo brasileiro, houve um forte desinvestimento na floresta amazónica. Segundo um estudo publicado na revista Nature em agosto as emissões de dióxido de carbono (CO2) nesta floresta duplicaram em 2019 e 2020, os dois primeiros anos do governo Bolsonaro. De acordo com esses dados a Amazónia já começou a libertar mais dióxido de carbono do que aquele que absorve.

A esta análise junte-se os dados preliminares do Instituto de Pesquisas Espaciais, do primeiro semestre deste ano, que alertaram para o facto de o acumulado de avisos de desmatamento na Amazónia terem atingido os 2416 km2, o que representa uma queda de 39% em comparação com o período homólogo do ano passado. Entre janeiro e junho de 2023 o desmatamento na Amazónia caiu 33,6%.

Num outro plano, a 22 de setembro, o Supremo Tribunal Federal do Brasil reconheceu aos povos indígenas o direito às terras que historicamente ocupam. O marco temporal foi definido de acordo com a tese segundo a qual os povos indígenas apenas tinham direito de voltar a ficar com as terras que ocupavam ou disputavam a 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição brasileira.

Uma decisão que o Cacique Dadá Borari , chefe da tribo Maró, na Amazónia, recebeu com satisfação. Falta, agora, saber quais as compensações para os indígenas.

Como é o dia-a-dia na Amazónia?

Sou o Cacique Dadá Borari na terra indígena Maró. Esta terra está no estado do Pará, no distrito de Santarém, na Amazónia.

Como é que vivemos lá? Antes a gente vivia uma vida muito saudável desde ao acordar ao dormir. Você acordava e via a floresta intacta. Os peixes, os rios, os lagos. Hoje não é mais assim. A gente não consegue mais acordar com esse olhar, você já acorda com um olhar preocupante. Pela seca, a falta de água, a falta de chuva, a temperatura cada vez mais forte. Olhando para o rio, você vê as balsas passando cheias de madeira, vê camiões passando com madeira. Então para nós isso é muito preocupante.

Hoje, 60% do povo amazónico, o indígena que mora na Amazónia, os quilombolas (descendentes de comunidades formadas por escravos), todos os povos que ali estão, sofrem de doenças mentais por conta da grande preocupação com que vivemos lá.

Parte dessas pessoas são as que estão mais próximas das lideranças. Hoje as lideranças que defendem a floresta, o rio, a vida que ali vive na Amazónia, são ameaçados de morte. Então quem está próximo dessas pessoas da liderança acabam também por adoecer mentalmente. E a sociedade não vê isso, os direitos humanos não veem isso. Acham que têm de dar proteção somente para aquele que está ameaçado, mas em volta dele existe toda uma comunidade que também está ameaçada.

Hoje a nossa juventude, através de muito trabalho de consciencialização pelos grandes líderes, eles estão voltando a ter uma compreensão. Porque antes estavam muito a deixar levar-se pelo sistema e o que é mais preocupante é que as nossas grandes universidades estão na Amazónia com o intuito, não de formar pessoas para defender o seu território, mas com ideia de formar pessoas para o mercado de trabalho. Para trabalhar nas grandes indústrias, nas empresas de manejo sustentável, que não têm nada de sustentabilidade, são de manejo madeireiro mesmo, e nas grandes empresas de plantio mecanizado, que é o plantio de soja, milho, arroz, etc. A universidade tem esse foco de formar as pessoas. E nós, indígenas, líderes, estamos a dizer que precisamos de formar novas lideranças para que possamos ter uma visão de futuro, um olhar pelo bem-estar de todo o mundo porque do jeito que a Amazónia está evoluindo a gente não consegue mais acordar com a cabeça sem estar pensando "o que é que a gente vai fazer para proteger".

Já foi ameaçado?
Eu já sofri várias ameaças de morte, inclusive no dia 6 de setembro recebi uma ameaça de um madeireiro.
Em 2006 fui vítima de dois torturamentos, fui para o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e fui escoltado até quatro meses atrás. Saí porque mudou o coronel naquela região mas a minha escolta policial está a voltar de novo.

Não é uma vida boa. E eu não deveria ser ameaçado porque eu não estou defendendo grupos de miliciosos. Eu estou defendendo vidas que é a floresta, rios, peixes, os animais, todos os seres, é o que eu defendo. Mas por você defender o seu território, você acaba sendo ameaçado de morte por conta do grande empreendimento que está chegando naquela região que acha que o desenvolvimento só existe se se continuar construindo barragens, inundando toda aquela biodiversidade e destruir a floresta, fazer substituição da floresta nativa com plantio de soja, arroz e outras coisas. Acham que o desenvolvimento é isso e eu acredito que não.

Defende a necessidade urgente de proteger a Amazónia e todas as suas formas de vida. Como é que o digital pode ajudar nesse processo?
Vejo que a tecnologia digital chegando na Amazónia, nas mãos das pessoas que protegem a Amazónia, acredito que a gente vai ter uma saída muito grande.
Mas se ela chegar nas mãos de pessoas que trabalham com grande agronegócio, não vai adiantar de nada. Porque o povo da Amazónia hoje tem uma consciência que é cuidar e preservar. Mas ainda está faltando justamente o meio de comunicação, o digital. O digital chegando vai ajudar muito porque a gente vai estar passando notícias em tempo real. E hoje, todos os agressores da floresta têm medo da comunicação. Quando ele vê uma câmara já questiona o que vão fazer comigo. Então o digital chegando é uma forma da gente frear tudo isto. Vejo que é uma das saídas que a gente vai conseguir evoluir, expandir e informar em tempo real. Então encontro como uma solução.

Todos os povos indígenas que habitam na Amazónia ainda têm essa perspetiva ou ainda é difícil fazer entender essa importância?
Na Amazónia temos indígenas que sabem falar o português, além da sua própria língua, mas também temos povos indígenas que são pessoas que só têm contacto com a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) então são mais reservados. Mas esses indígenas têm vontade de falar para o mundo, só que não têm oportunidades. Temos uma FUNAI que vem de há muito tempo e que acaba sendo ditadora, que diz "tu só faz o que eu quero". Mas os nossos próprios indígenas estão a dizer que não e que querem liberdade, querem falar. Ou seja, os que falam português, os que têm já contacto com a sociedade, todos querem divulgar a sua luta porque ali tem a cultura, o social da vida quotidiana de todos os dias daquele povo, a vivência e a sobrevivência na floresta. Esses conhecimentos são conhecimentos riquíssimos que não é passado para a sociedade porque não temos uma oportunidade de divulgação.

A comunicação que está naquela região, na Amazónia, está nas mãos de pessoas que querem dizer que se um indígena tem um telemóvel no bolso, já não é mais é mais indígena. É aquele olhar preconceituoso, ignorante. A gente está aqui no século XXI e precisamos de acompanhar o sistema porque senão vamos ser só mais um indígena de há 200 anos.

80% da juventude das nossas aldeias tem pessoas formadas, fazendo faculdade. Isso é para entender, ler, aprender, interpretar e mostrar para o mundo que a forma como eles estavam pensando para nós não está sendo legal. Então nós precisamos de também dizer "presidente, esse seu projeto não está sendo legal, você vai nos impactar nesses aspetos". Por isso nós temos pessoas indígenas formas em várias áreas como ambientalistas, antropólogos, historiadores.

Só que aí o poder da comunicação infelizmente ainda está na mão de pessoas que tentam contribuir mas ainda não está a ser suficiente.

Quais são as maiores ameaças que identifica na Amazónia neste momento?
A ameaça mais profunda são as alterações climáticas. A seca está a ameaçar muito e outra coisa é a cooptação pelo grande empreendimento para as nossas lideranças. Essa é uma ameaça muito preocupante.

Sente que o governo brasileiro, com o regresso de Lula da Silva à presidência, que também se está a voltar à luta pela proteção da Amazónia?
Tivemos esse privilégio de voltar ao governo Lula. Foi um candidato nosso. É um candidato nosso e a gente conseguiu frear um pouco o desmatamento da Amazónia com a empoderação da ministra Marina Silva, no ministério do Meio Ambiente. Ela tem uma trajetória de luta, de preservação, de conservação, tudo, para que a gente possa amenizar o grande desmatamento na Amazónia. Já tivemos um avanço em relação a isso mas acreditamos que isso ainda não é o suficiente, temos de pensar mesmo em parar o desmatamento. Tem o prazo do governo Lula de 30 anos para zerar o desmatamento mas será que vamos alcançar esse objetivo? É aí que está.

Se você cruza os seus braços e espera pelo presidente, aí é difícil. Mas se você contribui, se todos os que moram ali contribuíram, a gente consegue alcançar essa meta. Então muitas das vezes a gente só quer criticar mas você não quer ajudar. A contribuição da gente é muito legal nesse momento.

Na semana passada o Supremo Tribunal do Brasil reconheceu aos indígenas as terras que historicamente ocupam. Pode esta decisão significar uma maior e melhor proteção da Amazónia?
O julgamento do Marco Temporal foi a decisão mais real que o governo brasileiro conseguiu alcançar. Por conta dessa emenda, os grandes políticos estavam ali a dar uma brecha, ou seja, dar uma oportunidade mais uma vez para os grandes empreendimentos chegar e explorar dentro dos territórios indígenas.
Com a derruba do marco temporal, isso vem fortalecer a luta de todas as populações indígenas que moram nesse país do Brasil.

Para nós foi uma vitória muito grande só que não devemos somente esperar por isso. O governo está a dizer que tem muitos indígenas a pedir demarcação. Beleza! Porque é que está a pedir demarcação hoje e não antes? Porque antes todo o mundo vivia uma vida digna, ninguém estava a ser perseguido. Mas quando o povo de fora começa a chegar, a migrar, a começar perseguindo e fazer os empreendimentos, a população indígena decidiu que também queria a sua terra demarcada. Se não houvesse essa migração, não havia pedido de terras indígenas. Os pedidos de novas terras indígenas é justamente por conta da migração que se sobrepõe à nossa região.

Com a decisão da quebra do marco temporal, para nós ela trouxe um respaldo grande porque o que está em jogo hoje não é só a vida humana do indígena. É todo o processo histórico, é todo o nosso resgaste cultural. Porque a partir do momento que destrói o terreno indígena, você está acabando com toda a cultura daquela população. Por exemplo, quem mora na cidade, ele tem tudo. Se está com uma dor vai a uma farmácia. O indígena está lá na aldeia e se aparece uma dor de cabeça, ele vai lá na floresta buscar uma planta medicinal. O que mora na cidade, se está com vontade de comer um peixe, vai no mercado e compra esse peixe. Nós vamos ao rio, que é o nosso mercado. Portanto, a partir do momento que você desmata tudo isso, está a acabar com a cultura daquele povo, com o modo de ser e de viver daquele povo. Para nós isso é muito preocupante. E o que é mais preocupante é que com a chegada dos grandes empreendimentos e se o marco temporal não fosse derrubado, nós íamos perder toda a nossa liderança. Porque todas as lideranças que defendem a floresta estão ameaçadas de morte. O empreendimento chega na Amazónia trazendo a ameaça, matando gente, e isso é muito preocupante para nós.

Por isso é que quando houve a quebra do marco temporal a gente comemorou. Não tem outra coisa a não ser comemorar mas não dá para ficar de braços cruzados, muito pelo contrário. É aí que temos de estar mais unidos e propor novas ideias para o governo, e fazer demarcação das terras indígenas porque isso é essencial para todos.

Já há muita juventude indígena formada em diversas áreas. Pensa que isso vai poder mudar realmente as coisas no Brasil?
A juventude indígena hoje tem um objetivo. Esse nosso objetivo é dizer para a sociedade que existimos e que queremos respeito. E esse respeito vem trazendo a garantia da soberania e a vida da humanidade. Hoje a nossa juventude quando sai da aldeia para fazer uma formação, ele já sai ciente de que tem de voltar para o território e ajudar aquele povo que está ali. Esperamos muito evoluir nessa linha de pensamento e tirar além do pensamento, botar para a prática. Porque se você fica apenas falando e não vai para a prática, não consegue evoluir. Por isso é que estamos a falar para a juventude "bora fazer". Se você tem o poder de comunicação na mão, vamos divulgar a luta desse povo, escrever alguma coisa, publicar a história, a resistência, a cultura desse povo. É isso que justifica o não desmatamento ali.

Pode falar sobre o seu cocar. As penas têm algum significado?
Nós cacique, nós liderança, eu sou cacique geral do meu território, usamos penas das aves da floresta e a pena do gavião, ele é um ser muito forte na floresta. Quando colocamos a pena, o nosso cocar , estamos em sintonia com a floresta. Só os guerreiros usam, justamente para pegarmos inspiração dos seres da floresta para fazer-nos falar em nome dela.

sara.a.santos@dn.pt

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