Burqini não, surfqini sim?

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Há umas décadas era normal ver nas praias portuguesas umas senhoras completamente vestidas, arregaçando as saias à beira da água. Ainda hoje as mulheres são, à entrada de certos templos cristãos (São Pedro, em Roma, é um deles), obrigadas a "cobrir-se" - tapar ombros, pernas, decote - e alguns até disponibilizam "cobertura": na catedral de Milão, em 2001, um padre lançou-me, literalmente, um pano para cima por estar com um top de alças. Convém também recordar que entre os judeus ortodoxos as mulheres andam de cabelo tapado e o mais vestidas possível (o que também vale se forem nadar). O mesmo prescreve a chamada "lei cigana".

Tudo isto são realidades europeias/ocidentais com as quais se convive, aparentemente, sem grandes problemas - mesmo se constituem manifestações incontroversas da ideia de que o corpo das mulheres é pecaminoso, provocante ou vergonhoso e deve ser resguardado, controlado, ocultado, aprisionado em atenção aos homens (que, coitados, não se controlam) e "respeito" pelos deuses. A mesma ideia que subjaz aos vários tipos de "traje islâmico" - do hijab, lenço que cobre o cabelo, aos radicais burqa (espécie de tenda em que até olhos são tapados com rede) e niqab (apenas com os olhos à vista) -, e que nas praias e piscinas implica às mulheres que a acatam veranearem "vestidas" ou com aquilo a que se deu o nome de burkini.

A burqa e o niqab estão desde 2010 proibidos nas ruas de França e desde 2004 o mero hijab é proibido nas escolas públicas a estudantes (exceto na universidade) e nos serviços públicos a funcionárias. A proibição, porém, é igualitária: abrange todos os outros sinais exteriores de religiosidade, como a quipá judaica ou crucifixos ostensivos. E, mesmo se discutíveis, as referidas leis alicerçam-se em direitos fundamentais de terceiros: à segurança no primeiro caso (por se ocultar o rosto); ao livre desenvolvimento da personalidade (das crianças) e a não se ser alvo de proselitismo por parte do Estado no segundo. Já os regulamentos agora surgidos em cidades balneares francesas - e avalizados pelo PM Valls - com a ostensiva intenção de proibir o burkini mais não são do que histeria, perseguição e xenofobia disfarçadas de laicidade e feminismo.

É revoltante ver mulheres tapadas dos pés à cabeça por serem mulheres, em nome de uma religião? Para mim, feminista, ateia e laica, evidentemente. Mas laicidade significa respeitar a liberdade de ter ou não ter religião, e ser feminista não pode significar que se recuse a mulheres adultas, numa parte do mundo que lhes garante os mesmíssimos direitos que aos homens, a capacidade de tomar decisões sobre si. Tenho tanto direito de dizer a uma mulher que, por ser mulher e muçulmana, não pode tomar banho de burkini como ela teria de me obrigar a vestir aquela coisa. E, já agora, uma dúvida: se as muçulmanas passarem a aparecer nas praias da proibição em fato de surf ou de pesca submarina também as expulsam?

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