"Em Cabul, as conversas eram todas à volta de quando era o fim"

Entrevista ao ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus, escritor e analista do Instituto Hudson, que deixou a capital afegã dois dias antes de os talibãs chegarem. Ao DN, Bruno Maçães conta que muitos afegãos acreditavam que os EUA não iriam permitir o que está a acontecer. E fala das consequências.
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Deixou Cabul dois dias antes da chegada dos talibãs. Porque é que estava no Afeganistão?
Desde que saí do governo tenho viajado e escrito. Os meus livros são sobre mudanças geopolíticas em diferentes regiões ou países. Daí a viagem ao Afeganistão, uma de muitas, para ver as coisas de perto. Não foi nada oficial, ninguém, nenhuma embaixada, me pagou para ir. Viajei a título pessoal.

Que diferenças encontrou nesta viagem em relação a anteriores?
Havia sinais cada vez mais claros de progresso social e económico, mas também o sentimento de que tudo estava a chegar ao fim. Um ambiente bastante lúgubre, sombrio. Havia jantares e festas privadas e as conversas eram todas à volta de quando era o fim. Já havia muitos a tentar sair, mas ainda assim ainda havia uma certa ilusão de que os norte-americanos, no último momento, iam impedir a queda de Cabul, que sobreviveria isolada e cercada. Ninguém acreditava que os EUA permitissem o que na verdade está a acontecer. Houve muita gente apanhada desprevenida por causa disso, mas também gente que foi complacente.

Tinha previsto ficar quanto tempo?
Eu não tinha voo de regresso, gostava de ter ficado mais tempo, porque acabei por só ficar seis dias. Mas estava a ter contactos com muita gente, antigos e atuais membros do governo, jornalistas, e deu para perceber que as coisas estavam a colapsar rapidamente. Por isso decidi comprar o bilhete para sair. E a verdade é que já teria sido muito difícil partir no dia a seguir. Acabou por ser na altura certa.

Se havia esse sentimento de que a situação ia mudar, porque é que de repente houve o caos na retirada?
Para quem estava em Cabul e falava com as pessoas, não havia qualquer dúvida de que os talibãs estariam lá dentro de dias. Continuo perplexo como os serviços secretos americanos pareciam acreditar que demoraria três meses. Se se trata de incompetência ou de outra razão é difícil de saber. Mas julgo que há uma crise da inteligência dos EUA. Há uma certa incapacidade de perceber as coisas, o terreno à distância, há estruturas gigantescas que já não respondem à realidade. E tudo isto tem consequências, porque a retirada é absolutamente desorganizada, caótica. Nada foi planeado. Se tivesse sido, o custo humano seria muito menor. Falamos da retirada do Vietname como um desastre, mas esta é incomparavelmente mais desastrosa, porque há milhares de cidadãos americanos e europeus que vão ser deixados para trás. É inimaginável. Agora é uma questão de saber se os talibãs são diferentes dos de há 20 anos.

Supostamente estão a apresentar-se como mais moderados. Acredita que isso é possível?
Para os afegãos em risco não acredito. Estava a tentar ajudar alguns jornalistas a sair e as mensagens que recebo são de absoluto desespero e confio mais neles do que nas palavras oficiais. Eles sabem que vão estar em perigo porque tiveram associação a ocidentais ou foram críticos dos talibãs. A vida será muito difícil. Não excluo que haja execuções. Porque tudo vai mudar a partir de 1 de setembro. E é possível que a internet seja cortada e então não saberemos o que se passa. Quanto aos ocidentais, imagino que seja um pouco diferente, os talibãs têm dito que não estão interessados em impedir a sua saída e ainda há uma certa capacidade de os EUA e os países europeus fazerem pressão ou oferecerem recompensas financeiras. Mas também é possível que as coisas corram mal. Se eu fosse um ocidental ainda preso em Cabul estaria assustado.

As pessoas com quem tem falado tentaram ir ao aeroporto?
Nos primeiros dois ou três dias sim, e algumas foram bem-sucedidas e saíram. Nos últimos dias a mensagem era muito clara, sem ter documentos não podem passar nos postos talibãs e depois nos americanos. Muitas têm ficado em casa, onde apesar de tudo é mais seguro, à espera de um contacto, com indicações muito precisas de onde ir e quem encontrar no portão ou, idealmente, serem recolhidas em veículos armados. Uma das pessoas continua a perguntar desesperadamente se é possível ir para o aeroporto e se ainda há voos, apesar do atentado.

O atentado muda alguma coisa?
Não no Afeganistão. Para as pessoas de Cabul é mais uma tragédia, em cima de tantas outras. E sabíamos que o ISIS-K [o Estado Islâmico-Província de Khorasan] estava presente e que os talibãs não os estavam a proteger, pelo contrário. As consequências serão domésticas, nos EUA. [O presidente Joe] Biden tinha apresentado a ausência de vítimas americanas como símbolo do sucesso da operação. Há muitos republicanos a pedir a demissão ou o impeachment. Nesta altura não é possível, mas em 2022, com o novo Congresso, pode ser inevitável. Isto vai ser alvo de inquéritos durante meses. Sempre me foi dito pelos americanos em Cabul que esta operação tinha muito que ver com as eleições de 2022, tentar apresentar a retirada como algo que os americanos tinham pedido e esperar que, na altura, os problemas já estivessem esquecidos. É mais difícil com o atentado. Isto mudou o debate.

Num artigo no The Telegraph, criticou a atuação dos EUA nos últimos 20 anos no Afeganistão. Que lições se devem tirar?
A minha ideia é que temos de repensar o modo como tentamos intervir noutras regiões. Não acredito que devamos abandonar essas tentativas, mas têm de ser feitas de modo muito diferente, com mais respeito pela independência e a soberania dos países, das suas tradições, de um modo mais colaborativo. A minha tese é simples: tudo foi imposto de fora, de um modo muito abstrato, desligado da história e da sociedade afegãs, por isso era tudo um castelo de cartas que colapsou assim que os EUA anunciaram que iam sair. É uma cascata de más decisões, de políticas falhadas, da intervenção até à retirada. Sobretudo a criação de um aparelho de Estado no Afeganistão tão dependente dos EUA e tão frágil que colapsou logo que foi anunciada a retirada.

Biden herdou de Donald Trump a decisão de sair. O que falhou?
Os dois estão de acordo na questão de sair e de pôr fim à ocupação. E parece haver grande consenso na sociedade americana. Quando escrevo nas redes sociais dá para perceber isso, a exceção são algumas franjas bastante marginais de neoconservadores, que continuariam a ocupação por 70 ou 80 anos. Há um consenso alargado de que era preciso sair. Mas a questão era como sair. Nós não confiamos muito nem na palavra nem nas capacidades de Trump, mas o acordo de fevereiro de 2020 estava cheio de condições. Os talibãs teriam de participar num processo político inclusivo, no novo governo. Como eles não respeitaram a sua parte, era de esperar que os EUA não respeitassem a sua e não abandonassem o país. Se Trump agiria de um modo diferente, não sei. Ele não é muito previsível, nem de confiança, mas era isso que estava no acordo. Apesar de tudo, pareceu-me bastante defensável. O que não foi defensável foram as decisões de Biden até hoje, muito precipitadas e caóticas. Porque, no âmbito do acordo, era suposto por exemplo os EUA ficarem com uma presença militar a proteger a embaixada e o aeroporto continuar a funcionar, com presença norte-americana ou turca... E quando estive em Cabul, era o que toda a gente dava como adquirido. Mesmo esse compromisso foi abandonado. O acordo não foi respeitado por ninguém.

O Afeganistão vai destruir ainda mais a imagem dos EUA?
Há uma espécie de golpe duplo. Com Trump foi mais ao nível dos valores e da linguagem. E com Biden está a ser ao nível das capacidades e do poder. Juntas são um golpe no prestígio americano.

susana.f.salvador@dn.pt

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