Não vale a pena andar às voltas quando o tema é a Autobiografia de Bruce Springsteen, que sai hoje em todo o mundo - e em Portugal também - porque estas 572 páginas são mesmo boas. E porquê? Têm sabor a verdade e parecem ter sido mesmo escritas por ele. Com um grande benefício, despe uma estrela do rock como raramente aceitam pôr-se perante os fãs..[artigo:5410254].E quando se diz "despe" é quase literal porque o Springsteen que se conhece dos discos nada tem que ver com o Brraauuuuce - como o avô o chamava quando lhe dava um puxão de orelhas - que ele oferece aos leitores. Afinal, trata-se de um cantor que tem como principal imagem icónica uma fotografia tirada por Annie Leibovitz para a capa do seu álbum mais famoso, o Born in the USA, na qual só se vê o corpo um pouco acima e abaixo do rabo vestido por uns jeans e toda a gente o reconhece. Está tudo dito....[youtube:lZD4ezDbbu4]."Autobiografia" é um conceito que raramente se adapta a estrelas com a dimensão planetária como é a de Bruce Springsteen. Isso descobre-se logo na frase inicial: "Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu." No entanto, avisa, "tenho uma boa história para contar"..É verdade, pois tal como no disco Chapter and Verse que saiu na semana passada, onde se pode ouvir uma sonoridade própria de puto fascinado pelas bandas que surgiam por todo o lado e o fizeram obrigar a mãe a comprar uma guitarra péssima por poucos dólares, nas páginas da Autobiografia compreende-se o que fez na sua cabeça o rebolar de ancas de Elvis Presley e a loucura da digressão norte-americana dos Beatles quando foram ao mais famoso talk-show televisivo, o de Ed Sullivan. Mesmo que a dança de Elvis seja censurada da cintura para baixo e os cabelos dos Beatles passem despercebidos..[youtube:WKtqxWquhtU].A Autobiografia faz lembrar o alinhamento dos espetáculos de Springsteen: canção atrás de canção, sem nunca abrandar a vontade de deixar o público exausto e satisfeito. Não era por acaso que o guitarrista dos Rage against the Machine, Toni Morello, quando integrou a E Street Band num concerto na Califórnia em 2008 dizia que estar no palco com Bruce era uma "exaustão ortopédica"..Ora se Springsteen faz isso num concerto de duas horas e meia, imagine-se o que acontece quando teve sete anos para elaborar a prosa deste livro! Não é que a Autobiografia cause um problema de coluna aos leitores por causa do peso de tantas páginas, antes por se expor integralmente. Como é o caso da vida familiar enquanto criança, quando refere que explorava os sentimentos protetores da avó, que perdera uma filha, e utilizava a situação contra os próprios pais. Ou que "éramos quase pobres"; "a casa estava decrépita"; "fui vítima do bullying que todos os aspirantes a estrelas de rock têm de aguentar num silêncio raivoso"... Também se pressente que a alcunha, Boss, nasce bem cedo, quando relata o seu poder no bairro..Não lhe faltam tiradas filosóficas, como a do seu relacionamento com o catolicismo e as professoras freiras ameaçadoras; e que não foi "justo para com o pai nas suas canções - a que dedica um dos últimos capítulos numa análise emocionada -, bem como a fuga constante do álcool e da droga. Que insiste tanto que até parece um santinho de pau carunchoso, pois os ambientes por onde anda até ter sucesso são naturalmente ébrios e alucinogénicos"..Outro dos pormenores que revela foi o modo como ignorou, e não deixou ninguém ver, a chegada do homem à Lua, porque estava a dar um espetáculo; ou de como fugiu ao alistamento para ir combater no Vietname, levezinho e aproveitando os movimentos pacifistas para não ficar malvisto, elogiando até o facto de Elvis ter combatido. Aliás, Presley é a primeira grande motivação, e confessa após vê-lo na televisão: "Nessa noite, 70 milhões de americanos assistiram àquele terramoto humano." Elvis foi a resposta "divina" à sua angústia adolescente: "Quando o homem com a guitarra desapareceu envolto em gritos, fiquei ali petrificado em frente à TV, com a cabeça a mil.".O cantor gosta de dar títulos fortes aos capítulos, por isso quando surgem na sua vida os Beatles, intitula-o A Segunda Vida. Não é por acaso: "Quando os ouvi, o rádio queimava. Porque é que o som era tão diferente?" A partir tudo muda: "Espremia meio tubo de Clearasil na cara, dava piruetas e reviravoltas na pista de dança, tive o primeiro beijo e a primeira ereção.".De guitarra má em guitarra menos má, Springsteen vai-se preparando para ser o que conhecemos hoje dele. Quando compra uma por 69 dólares, uma fortuna, já tinha a ponta dos dedos calejados de tanto tocar, põe o pé na música em definitivo. Funda os Merchants, segue-se os The Castiles (ouvir o disco), tocam num parque de caravanas, há os Child e, finalmente, a Steel Mill (ouvir o disco). Fartos de atuar na cidade natal e arredores, Bruce e companhia vão para a Califórnia, época que é uma das melhores partes destas memórias..O mais interessante desta Autobiografia é conhecer-se na intimidade o questionamento constante em que Bruce Springsteen se encontra durante muitos e muitos anos, até ser famoso: "Eu era bom, mas talvez não tão bom ou excecional como eu imaginava." Consciente de que havia bandas com um repertório e um som próprios que o ultrapassavam, Springsteen reinventa-se: "Sabia que teria de fazer algumas mudanças." Entre elas estava a decisão de criar uma música própria e fazer da banda o que bem quisesse: "Uma decisão das mais inteligentes da minha juventude." Estava no início dos anos 70 e começa a compor as canções do primeiro álbum, Greetings from Ashbury Park, que o produtor John Hammond edita após escutar Growin" up (ouvir o disco): "E as coisas começaram a acontecer... Venderam-se 23 mil discos, poucos para a editora, um êxito para mim.".[youtube:jFI2EU50Nl0].Ainda dá um cheiro do segundo álbum, The Wild, The Innocent and the e Street Band, quando vai a história na página 233. A partir daí, na segunda parte, é mais aquilo que se sabe de Springsteen, pois é a hora de compor, gravar e editar o primeiro grande álbum: Born to Run. Aquele que dá título a esta Autobiografia e o torna definitivamente conhecido. A partir daqui é história, do rock e da América, que se continua a ler muito bem. Pode dizer-se que Springsteen não é só compositor de canções, também sabe fazer bons acordes literários.