Brraauuuuce Springsteen, neto mimado e fã de Beatles até ser Boss
Não vale a pena andar às voltas quando o tema é a Autobiografia de Bruce Springsteen, que sai hoje em todo o mundo - e em Portugal também - porque estas 572 páginas são mesmo boas. E porquê? Têm sabor a verdade e parecem ter sido mesmo escritas por ele. Com um grande benefício, despe uma estrela do rock como raramente aceitam pôr-se perante os fãs.
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E quando se diz "despe" é quase literal porque o Springsteen que se conhece dos discos nada tem que ver com o Brraauuuuce - como o avô o chamava quando lhe dava um puxão de orelhas - que ele oferece aos leitores. Afinal, trata-se de um cantor que tem como principal imagem icónica uma fotografia tirada por Annie Leibovitz para a capa do seu álbum mais famoso, o Born in the USA, na qual só se vê o corpo um pouco acima e abaixo do rabo vestido por uns jeans e toda a gente o reconhece. Está tudo dito...
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"Autobiografia" é um conceito que raramente se adapta a estrelas com a dimensão planetária como é a de Bruce Springsteen. Isso descobre-se logo na frase inicial: "Nasci numa cidade à beira-mar onde quase tudo é contaminado por uma certa dissimulação. Incluindo eu." No entanto, avisa, "tenho uma boa história para contar".
É verdade, pois tal como no disco Chapter and Verse que saiu na semana passada, onde se pode ouvir uma sonoridade própria de puto fascinado pelas bandas que surgiam por todo o lado e o fizeram obrigar a mãe a comprar uma guitarra péssima por poucos dólares, nas páginas da Autobiografia compreende-se o que fez na sua cabeça o rebolar de ancas de Elvis Presley e a loucura da digressão norte-americana dos Beatles quando foram ao mais famoso talk-show televisivo, o de Ed Sullivan. Mesmo que a dança de Elvis seja censurada da cintura para baixo e os cabelos dos Beatles passem despercebidos.
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A Autobiografia faz lembrar o alinhamento dos espetáculos de Springsteen: canção atrás de canção, sem nunca abrandar a vontade de deixar o público exausto e satisfeito. Não era por acaso que o guitarrista dos Rage against the Machine, Toni Morello, quando integrou a E Street Band num concerto na Califórnia em 2008 dizia que estar no palco com Bruce era uma "exaustão ortopédica".
Ora se Springsteen faz isso num concerto de duas horas e meia, imagine-se o que acontece quando teve sete anos para elaborar a prosa deste livro! Não é que a Autobiografia cause um problema de coluna aos leitores por causa do peso de tantas páginas, antes por se expor integralmente. Como é o caso da vida familiar enquanto criança, quando refere que explorava os sentimentos protetores da avó, que perdera uma filha, e utilizava a situação contra os próprios pais. Ou que "éramos quase pobres"; "a casa estava decrépita"; "fui vítima do bullying que todos os aspirantes a estrelas de rock têm de aguentar num silêncio raivoso"... Também se pressente que a alcunha, Boss, nasce bem cedo, quando relata o seu poder no bairro.
Não lhe faltam tiradas filosóficas, como a do seu relacionamento com o catolicismo e as professoras freiras ameaçadoras; e que não foi "justo para com o pai nas suas canções - a que dedica um dos últimos capítulos numa análise emocionada -, bem como a fuga constante do álcool e da droga. Que insiste tanto que até parece um santinho de pau carunchoso, pois os ambientes por onde anda até ter sucesso são naturalmente ébrios e alucinogénicos".
Outro dos pormenores que revela foi o modo como ignorou, e não deixou ninguém ver, a chegada do homem à Lua, porque estava a dar um espetáculo; ou de como fugiu ao alistamento para ir combater no Vietname, levezinho e aproveitando os movimentos pacifistas para não ficar malvisto, elogiando até o facto de Elvis ter combatido. Aliás, Presley é a primeira grande motivação, e confessa após vê-lo na televisão: "Nessa noite, 70 milhões de americanos assistiram àquele terramoto humano." Elvis foi a resposta "divina" à sua angústia adolescente: "Quando o homem com a guitarra desapareceu envolto em gritos, fiquei ali petrificado em frente à TV, com a cabeça a mil."
O cantor gosta de dar títulos fortes aos capítulos, por isso quando surgem na sua vida os Beatles, intitula-o A Segunda Vida. Não é por acaso: "Quando os ouvi, o rádio queimava. Porque é que o som era tão diferente?" A partir tudo muda: "Espremia meio tubo de Clearasil na cara, dava piruetas e reviravoltas na pista de dança, tive o primeiro beijo e a primeira ereção."
De guitarra má em guitarra menos má, Springsteen vai-se preparando para ser o que conhecemos hoje dele. Quando compra uma por 69 dólares, uma fortuna, já tinha a ponta dos dedos calejados de tanto tocar, põe o pé na música em definitivo. Funda os Merchants, segue-se os The Castiles (ouvir o disco), tocam num parque de caravanas, há os Child e, finalmente, a Steel Mill (ouvir o disco). Fartos de atuar na cidade natal e arredores, Bruce e companhia vão para a Califórnia, época que é uma das melhores partes destas memórias.
O mais interessante desta Autobiografia é conhecer-se na intimidade o questionamento constante em que Bruce Springsteen se encontra durante muitos e muitos anos, até ser famoso: "Eu era bom, mas talvez não tão bom ou excecional como eu imaginava." Consciente de que havia bandas com um repertório e um som próprios que o ultrapassavam, Springsteen reinventa-se: "Sabia que teria de fazer algumas mudanças." Entre elas estava a decisão de criar uma música própria e fazer da banda o que bem quisesse: "Uma decisão das mais inteligentes da minha juventude." Estava no início dos anos 70 e começa a compor as canções do primeiro álbum, Greetings from Ashbury Park, que o produtor John Hammond edita após escutar Growin" up (ouvir o disco): "E as coisas começaram a acontecer... Venderam-se 23 mil discos, poucos para a editora, um êxito para mim."
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Ainda dá um cheiro do segundo álbum, The Wild, The Innocent and the e Street Band, quando vai a história na página 233. A partir daí, na segunda parte, é mais aquilo que se sabe de Springsteen, pois é a hora de compor, gravar e editar o primeiro grande álbum: Born to Run. Aquele que dá título a esta Autobiografia e o torna definitivamente conhecido. A partir daqui é história, do rock e da América, que se continua a ler muito bem. Pode dizer-se que Springsteen não é só compositor de canções, também sabe fazer bons acordes literários.