O poeta Ezra Pound dizia que era preciso manter a língua eficiente. Palavras corrompidas, usadas fora do contexto, e a substituição arbitrária e compulsória de umas por outras tornam a língua mais pobre, imprecisa, ineficiente. Com isso, produzem pensamentos frouxos e, como se diz no Brasil, a vida vai para o beleléu..Hoje em dia, ao agradecer a alguém por qualquer favor que se lhe faça, quase nenhum brasileiro diz mais "Obrigado!". O gato comeu o primeiro "o". Milhões agora gorgolejam, ao responder, um excruciante "Brigado!". Não que isso seja novidade - apenas se tornou uma regra não escrita. Só falta começarmos a ver isso escrito. Naturalmente, o mesmo empobrecimento que produz o "Brigado!" impede que, se for uma mulher, ela diga "Obrigada!"..Da mesma forma, quando alguém nos lisonjeia atualmente com um correto "Obrigado!" (ou com seu correspondente "Obrigada!"), já abandonamos a resposta clássica, sóbria e elegante, "De nada" ou "Por nada". Em vez disso, cacarejamos um sonoro "Imagina!" - como se ficássemos sinceramente ofendidos por alguém estar nos agradecendo. E, pior ainda, em muitos casos, a pessoa não contente ejacula "Magina!", comendo o primeiro "i". Proponho o seguinte: se alguém nos diz "Brigado!", fica liberado o uso de "Magina!" - uma elocução merece a outra..E o que dizer do "Com certeza!"? Não sei como está aí em Portugal, mas, no Brasil, já há alguns anos essa expressão mandou para o limbo uma variedade de opções em que queremos demonstrar enfaticamente nossa concordância, como "Claro!", "Sem dúvida!", "Evidente!" ou "Certo!", além do melhor e tão mais simples "Sim!". Não mais. Agora, para todos os fins, é "Com certeza!" - uma praga que nos atinge sem distinção de idade, género, classe social, status económico, cor da pele ou preferência no futebol..Por falar em futebol, seus jogadores, nas torturantes entrevistas que são obrigados a conceder para os repórteres de televisão no fim das partidas, são os grandes abonadores do "Com certeza!" - e quase sempre sem terem a menor ideia do que aquilo significa. O repórter pergunta: "Fulano, vocês perderam a partida de hoje por dez-zero. Como será o próximo jogo?" O jogador responde, como se tivesse um disco girando dentro de sua cabeça, com uma gravação pronta a lhe sair pela boca: "Com certeza. Agora é levantar a cabeça e trabalhar duro para vencer o próximo jogo e conquistar nossos objetivos." Diante desse discurso oco e boboca, só cabe ao repórter agradecer:."Brigado!" E ao jogador, retrucar: "Magina!".Para o caso de o leitor nos dar o prazer de sua visita e tentar entender o que se fala em nossas cidades, saiba que os brasileiros já não vivem. Vivenciam. "Estou vivenciando um momento difícil", diz a Maricotinha. Fico penalizado, mas ficaria muito mais se a Maricotinha, em vez de "vivenciar", estivesse "passando por" ou "vivendo" aquele momento difícil. Há uma diferença, dizem os dicionários. Viver é ter vida, existir. Vivenciar também é viver, mas implica uma espécie de reflexão ou de sentir. Não é o caso da Maricotinha. O que ela quer dizer é viver, passar por. Mas disse "vivenciar" porque é assim que, ultimamente, os pedantes passaram a falar e ela se sente na obrigação de imitá-los..Da mesma forma, no Brasil de hoje, ninguém mais se coloca. "Posiciona-se". Ninguém mais se dirige a um lugar. "Direciona-se". Ninguém mais acrescenta nada. "Adiciona". E ninguém mais é diferente de ninguém. É "diferenciado". E porque evaporaram da língua o "Por causa de"? Agora é "Por conta de". Nada disso é errado, mas porque condenar ao desterro expressões com séculos de bons serviços prestados à língua? Sem nenhum motivo ou necessidade, certas palavras são banidas da fala comum e entram outras em seu lugar. Nada contra esta seleção natural, semelhante à que se dá na vida. A língua também é puro Darwin. Mas, para que morra uma palavra sobrepuje outra e se ponha em seu lugar, é preciso haver um sentido..Outra palavra do momento é "polémico". Ninguém mais no Brasil tem um comportamento ou opinião original, diferente do senso comum ou discutível - só "polémico". Mesmo que esse comportamento ou opinião não encontre ninguém para polemizar com ele. O mesmo quanto a "inédito" - nada parece mais importante hoje, num disco, espetáculo ou exposição, do que conter material "inédito". Se estou para lançar um livro de textos sobre cinema, música popular ou literatura, publicados originalmente em jornais, vêm perguntar-me se contém material "inédito". Respondo com a maior tranquilidade: "Não. É tudo édito." Nelson Rodrigues, pedindo perdão por dizer o óbvio, já decretara: "Todo o texto é inédito para quem não o leu antes."..A língua é viva, eu sei, mas está sujeita a vírus que, de repente, se infiltram pela televisão, pela internet e pela imprensa. Contaminam milhões de pessoas e, quando abrimos os olhos - ou os ouvidos -, começamos a achar que foi assim que sempre se falou ou que se deve falar..Se o leitor vier por aqui e ouvir expressões como "ponto fora da curva", "sair da zona de conforto" ou "dar o seu melhor", não se esforce para compreender. Não significam nada. São apenas chavões que as pessoas dizem sem pensar, como se as palavras fossem sons sem conteúdo, programados por um piloto automático..Jornalista e escritor brasileiro, autor de Carnaval no Fogo - Crônica de Uma Cidade Excitante demais, sobre o Rio de Janeiro (Tinta-da-China).