Brexit: sim, você também vai sofrer

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Regiões em falência, hospitais empobrecidos, prisões superlotadas: o brexit afetará todos na Europa. E, no entanto, ninguém está a assumir a responsabilidade pela confusão.

Agora é oficial. O Reino Unido invocou o artigo 50.º do Tratado de Lisboa e vai deixar a União Europeia. Não tome isto de ânimo leve - esta não é uma notícia falsa, este é um acontecimento histórico que vai mudar dramaticamente a Europa e a sua própria situação. A desintegração do continente está a avançar a toda velocidade e irá produzir muitos perdedores.

É possível que ainda não o sinta, mas a vida irá ser mais difícil por um longo período antes de voltar a ficar melhor. O mal é em grande parte autoinfligido; graças à fraca habilidade política dos dois lados do canal da Mancha. Não precisava de ser assim. Essa é a ironia da situação atual.

Eu olho para o brexit como académico e como cidadão. Como académico sinto-me razoavelmente feliz: o brexit é um caso fascinante para estudar e aumenta a audiência para o meu trabalho. Como cidadão, no entanto, sinto-me profundamente infeliz. Eu cresci na Silésia, atrás da Cortina de Ferro, e uma Europa sem fronteiras era o meu sonho. Hoje esse sonho está a ser destruído; não quero ver novos muros, implorar aos funcionários da imigração por um visto, solicitar uma autorização de trabalho numa Europa que considero a minha casa.

Embora tenha trabalhado e pago impostos no Reino Unido durante muitos anos, ainda sou cidadão polaco, sou portador de um passaporte holandês e tenho uma casa em Itália. A minha família está espalhada por todo o continente, assim como as minhas contribuições para o regime de pensões. O acesso a ambos será muito mais difícil para mim depois do brexit. Pergunto-me se algum funcionário me irá ajudar a resolver problemas pessoais causados pelos novos muros erguidos em todo o continente.

Poderá pensar talvez que o brexit afetará apenas nómadas como eu, e não sedentários como o leitor. Não está a planear ir de férias para a chuvosa Grã-Bretanha, então por que se há de preocupar? Não se iluda: o brexit não será um divórcio amigável e terá implicações para todos. Não é fácil desenredar 20 000 leis e regulamentos do acervo europeu; há numerosas vozes refratárias de ambos os lados da mesa de negociações, e estas, sob o brilho das emoções dos meios de comunicação, irão desempenhar um papel maior do que as considerações racionais no processo de negociação.

Desta vez o Tio Sam não estará lá para nos chamar a todos à razão; é provável que o Tio Trump aumente as nossas complicações. O brexit criará novas linhas divisórias na UE. O Reino Unido já está a tentar subornar a Polónia e a Hungria para o ajudarem a defender o seu caso. O brexit criará também novas linhas divisórias dentro do Reino Unido. A Escócia já exige um novo referendo de independência. Não ficaria surpreendido se os dois parceiros da negociação - a UE e o Reino Unido - se desentenderem como resultado do brexit.

A ideia de que o brexit pode vir a ser bom para a UE é absurda. "Finalmente seremos capazes de criar uma defesa verdadeiramente europeia depois do brexit", sussurrou-me recentemente um diplomata italiano. Claro, acabámos de perder um dos dois maiores exércitos europeus, foi a minha resposta. Um novo edifício em Bruxelas não equivale a uma defesa europeia. Com quem criaremos um exército europeu, com os checos e os belgas?

Também não consigo ver uma regulação europeia mais rigorosa do setor financeiro depois de o Reino Unido neoliberal deixar o mercado único. O governo de Roma já está a tentar seduzir os bilionários de Londres para se mudarem para Itália, oferecendo isenções fiscais. Outros logo seguirão o exemplo. Esta será uma corrida económica para o fundo, não para o topo.

Cidadãos e consequências

Veremos não só mais lacunas fiscais, precariedade e protecionismo, mas também regiões falidas, hospitais empobrecidos, prisões superlotadas, estradas degradadas e pontes em colapso. Como sempre, o fardo não será distribuído igualmente, criando mais conflitos dentro dos Estados individuais e entre eles. Limpar a confusão levará muitos anos e custará muitas lágrimas.

Eu teria soado mais otimista se o brexit tivesse sido apenas sobre a UE. A UE teve um desempenho fraco nos últimos anos e o seu valor está agora consideravelmente inflacionado em comparação com as duas décadas anteriores. No entanto, o brexit é apenas um dos muitos episódios que anunciam o surgimento de um poderoso movimento político destinado a destruir a narrativa, as instituições e a ordem instalada depois de 1989. Não é apenas a integração europeia que está sob ataque, mas também a democracia liberal e o livre comércio, a migração e uma sociedade multicultural, as "verdades" históricas e a correção política, os partidos políticos moderados e os meios de comunicação, a tolerância cultural e a neutralidade religiosa.

Em suma, o que está em jogo não é apenas o futuro da UE, mas também o futuro da sociedade liberal aberta.

Eu teria soado mais otimista se o brexit tivesse dado capacidades aos cidadãos europeus. Os defensores do brexit prometeram trazer o poder de volta de Bruxelas para Westminster, mas desde o referendo do brexit que eles têm tentado privar Westminster de qualquer palavra significativa sobre o resultado das negociações do brexit. Sejamos honestos: os cidadãos europeus não terão qualquer palavra sobre as complexas negociações. As elites partidárias disputar-se-ão na mesa de negociações e os cidadãos comuns terão de viver com as consequências.

Eu teria soado mais otimista se o brexit tivesse levado à autorreflexão e ao autoaperfeiçoamento em todo o continente. No entanto, ninguém está a assumir a responsabilidade pela confusão que está a ser criada. Políticos de ambos os lados do canal da Mancha apontam o dedo uns aos outros. Em Londres, eles culpam a UE; em Bruxelas, culpam a pérfida Albion. Mas como diz o ditado: são precisos dois para dançar o tango.

O Reino Unido e a UE terão de coexistir um ao lado do outro de alguma forma depois do brexit, mas por enquanto limitam-se a manter um diálogo de surdos. Sinto-me como uma criança que está a ser sujeita a um misterioso processo de divórcio entre os pais exaltados, sem ter direito a voz ou a atenção. E o leitor?

Artigo originalmente publicado no jornal alemão Die Zeit online

Professor de Política Europeia na Universidade de Oxford

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