Brexit: o regresso da nação?

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"O brexit
é o fim do sistema ocidental. Todos
os realinhamentos
são agora possíveis.
É o verdadeiro fim
da Guerra Fria".


Estas palavras são de Emmanuel Todd, em entrevista recente ao webmedia Atlântico. Há precisamente 40 anos, Todd publicara La Chute Finale - Essai sur la décomposition de la sphère soviétique, um livro que li no Inverno de 1976-77 e que apresentava como possível, senão fatal, o fim da União Soviética. Até que esse fim acontecesse em Dezembro de 1991 passaram quinze anos - ao longo dos quais as organizações internacionais, os serviços de inteligência, os grandes bancos e corporações, os Think Tanks prestigiados, continuaram a construir futuros, a fazer prospecções e a imaginar fins de milénio com a URSS de pedra e cal.

Todd, um historiador que se reclama de Fernand Braudel e de Emmanuel Le-Roy Ladurie, viu e previu a queda. E foi o único, com excepção de Helène Carrère d"Encausse. Em 1978, em L"Empire Eclaté, D"Encausse iria prever o fim da URSS às mãos das suas revoltosas repúblicas muçulmanas.

Todd partia da análise das estatísticas soviéticas e procurava as tendências que elas dissimulavam: somando expertise antropológica e demográfica e sensibilidade política, via na taxa de suicídios jovens e na mortalidade infantil sinais de protesto e dissidência. Na literatura de ficção científica (menos censurada do que o resto) detectava também um grande mal-estar social. Para ele, o princípio do fim começaria na Europa Oriental soviética, no rasto de uma pista que Andrei Amalrik levantara num livro publicado em França em 1970, L"Union soviétique survivra-t-elle en 1984?

Agora Todd vem dizer que o stress e os sofrimentos da globalização conduziram as sociedades ocidentais, não a abrir-se e a dissolver-se em unidades maiores mas, ao contrário, a procurar em si mesmas, nas suas tradições e fundamentos antropológico-culturais, a força para se adaptarem e reconstruírem. Para ele, o regresso do nacionalismo, da identidade nacional, à Europa foi iniciado pela Alemanha com a reunificação, em 1989-91. Uma reunificação feita à custa de grandes sacrifícios financeiros e decidida pelo chanceler Kohl contra fortes oposições. Seguiu-se a Rússia que, depois das humilhações e carências do tempo de Yeltsin, voltou, com Putin, ao orgulho nacional e ao estatuto de potência, provando-se militarmente na Geórgia, na Crimeia e na Síria.

O brexit é o terceiro caso desta "renacionalização". Mas o que é afinal esta renacionalização, este "regresso da nação", que parece agora ser o demónio número um dos políticos, analistas, comentadores e funcionários do "pensamento dominante", que vêem aí o fim da Europa e da Civilização, um apocalipse de soberanismo e xenofobia, um prenúncio de guerra, o Armagedão?

A UE contra a Europa

Na capa da primeira edição pós-referendo do Spectator anunciava-se o manual Don"t Panic: An Optimist"s Guide to Brexit...

Roger Scruton, que é hoje um dos mais interessantes pensadores políticos anglo-saxónicos, diz que o leave, longe de ser um voto anti-europeu, é um voto pelos "valores europeus", que nada têm que ver com as instituições e os dirigentes de Bruxelas. A começar pelo actual presidente da Comissão, o vidente Jean-Claude Juncker, que se confessa inquieto com o que "ceux que nos observent de loin, les dirigents d"autres planètes" possam pensar do brexit e do rumo que a Europa está a tomar.

Scruton diz-se europeu, não por causa de o Reino Unido ser da UE, mas por ele, Scruton, se considerar herdeiro da fé cristã e da civilização de Roma. Ele - e outros partidários do leave - não são antieuropeus mas não pensam que a civilização europeia se identifique com a geringonça burocrático-contabilística da UE. E acrescenta que, não tendo os ingleses sido vencidos e ocupados pelos alemães, não tiveram necessidade dessa reaproximação reconciliadora que inspirou o eixo franco-alemão e depois da reunificação, que levou ao euro e à passagem, sub-reptícia e dissimulada, do mercado comum para a união política.

Os ingleses que votaram leave pensaram na recuperação da independência política e aproveitaram o referendo, nascido do jogo partidário e eleitoralista de Cameron, para transformar um eurocepticismo vago num grito do Ipiranga contra a espiral que lhes ia roubando a independência.

Com a passagem do Mercado Comum à União Europeia, e depois de Maastricht, deu-se uma transformação qualitativa de um espaço económico-financeiro num processo de unificação política. Os ingleses, que tinham aderido ao Mercado Comum no tempo de Edward Heath, depois de desaparecido De Gaulle que não os queria na sua "Europa das Pátrias", ficaram sempre um pé dentro e outro de fora. Quando Thatcher se insurgiu contra "um super-Estado europeu exercendo um novo domínio a partir de Bruxelas", os seus companheiros de partido europeístas, liderados por Michael Heseltine, trataram de a liquidar com uma intriga partidária.

"O que é uma nação?"

Perante o resultado de 23 de Junho, foi impressionante o coro de impropérios e maldições que caiu sobre os bretões: eram velhos, ignorantes, ressentidos, medrosos, xenófobos, racistas e, pior que tudo, nacionalistas. E nacionalista, na retórica dos eurocorrectos, quer dizer paranazis, seguidores do Führer, cúmplices dos campos de extermínio e autores conscientes ou inconscientes de futuras guerras.

Os comentadores e mandarins da opinião não fazem a coisa por menos: recorrem à demagógica identificação do nacionalismo, de todo o nacionalismo, com uma forma muito especial, radical e perversa de nacionalismo, o hitlerismo alemão, o racismo biológico que leva ao genocídio. Ora reduzir o nacionalismo ao nazismo é o mesmo que reduzir o marxismo a Estaline, ao Gulag e à Revolução Cultural chinesa; ou definir o liberalismo pelo Terror da Revolução Francesa; ou reduzir o catolicismo à Inquisição espanhola.

A nação e o nacionalismo são outra coisa: Ernest Renan, respondendo à pergunta "o que é uma nação?", afirmou que era "uma alma, um princípio espiritual". Um princípio espiritual e uma alma que assentavam na história de uma comunidade política, num legado de recordações e esquecimentos e na vontade dos homens e mulheres dessa comunidade de continuarem juntos na História. Uma comunidade de memórias, glórias e sacrifícios, mitos e ritos de fundação, edificada sobre um substrato de usos, costumes e interesses comuns. E radicada num território com uma fronteira e uma chefia políticas. Com o Estado, o seu organizador ou até o seu criador, a nação tornava-se independente, passava a assumir "personalidade política".

Também por isso - lembraria Carl J. Friedrich - a nação e o Estado eram como dois irmãos siameses que, se separados, sempre se buscavam: os Estados sem nação (como os novos Estados africanos saídos da descolonização) empenhavam-se em eliminar tribalismos e clãs e em acelerar a construção da nação; as nações sem Estado procuravam esse Estado para defesa da sua identidade. Israel conseguiu-o e a Catalunha e a Escócia ambicionam-no.

Com o fim da Guerra Fria, multiplicaram-se os Estados. O que a economia globalizou, a política fragmentou. Em 1900 havia pouco mais de 50 países independentes; em 1950 eram mais de 100; hoje são cerca de 200, com a explosão de novos Estados que a queda do império soviético trouxe em 1991.

O (nosso) Estado Nacional

Nisso, Portugal e os portugueses são dos poucos países europeus que estão à vontade. O Estado afonsino, fundado em 1143, afirmou-se no terreno no final do século XIV, com um protonacionalismo que, contra a legalidade dinástica e feudal, inspirou, legitimou e venceu a guerra da Independência. Os Descobrimentos e conquistas ultramarinas nos séculos XV e XVI vieram consolidar essa independência que, perdida, se restaurou em 1640.

Hoje as fronteiras histórico-culturais da nação coincidem com as fronteiras político-territoriais do Estado. Não há dissidências de base étnica ou religiosa que perturbem essa unidade. E isso é um trunfo singular e importante na Europa. Com ou sem brexit, com mais ou menos União Europeia.

Historiador

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