"Bravura do soldado português é uma constante da história"

Almoço com o historiador Nuno Severiano Teixeira, professor da Nova, antigo ministro da Defesa e um dos autores de <em>História Militar de Portuga</em>l.
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Estamos já sentados à mesa, no Bica do Sapato, e Nuno Severiano Teixeira explica-me a sua escolha deste restaurante à beira-Tejo, pertinho da Estação de Santa Apolónia. "Costumo vir com frequência. Tem um ambiente agradável, comida boa e esta vista magnífica para o rio", diz-me o professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, também antigo ministro da Administração Interna e da Defesa, e que acaba de publicar uma História Militar de Portugal, em parceria com Francisco Contente Domingues (Universidade de Lisboa) e João Gouveia Monteiro (Universidade de Coimbra).

O livro, aliás, foi o pretexto para este almoço, num belo dia de sol em Lisboa, mais parecendo ser verão do que outono. E é ainda antes de escolhermos o prato que Nuno (foi assim que combinámos o tratamento) me conta um delicioso episódio a envolver o Bica do Sapato, o Porto de Lisboa, ele próprio e o Diário de Notícias: "Agora há este acrílico a separar o restaurante do cais, mas no início, aí quase há uns 20 anos, não havia nada. Passava-se de um lado para o outro à vontade. Até que alguém se lembrou de que estávamos numa zona que era fronteira externa e o Porto de Lisboa mandou erguer um muro de cimento em frente. Foi uma indignação geral. A vista do Bica do Sapato para o Tejo tapada. E recordo-me de eu próprio, que tinha já deixado de ser ministro da Administração Interna, aproveitar uma coluna de opinião que tinha então no seu DN para sugerir uma solução de bom senso, como este acrílico. Gosto de pensar que ajudei."

A escolha de ambos é peixe. Atum para o historiador, bacalhau fresco para mim. Nuno explica-me que foi depois de viver em Itália, onde se come muito bem mas tal não se aplica com exatidão ao pescado, que redescobriu quão excelente é o peixe português. Ora, essa vivência em Florença, onde fez o doutoramento em História das Relações Internacionais, foi uma das muitas que teve mundo fora desde miúdo este homem com raízes no Alentejo mas nascido em Bissau, em novembro de 1957, quando o pai, militar, estava lá destacado.

"Os filhos dos militares eram - são - geralmente pessoas desterritorializadas, como eu sou. Nasci na Guiné, o meu pai terminou a comissão e veio para Portugal. Voltei à Guiné, depois Portugal de novo, de seguida Moçambique, voltei a Portugal e depois mais tarde, pela natureza da minha vida académica, vivi em Florença, Washington, Bruxelas. Sou uma pessoa que não tem propriamente uma terra. Em cada uma dessas terras, dessas cidades, a pessoa acaba por fazer as suas rotinas, os lugares onde toma café, onde lê o jornal, onde compra a sua gravata", conta.

Aproveito o mote e pergunto a Nuno se, tendo escrito tanto sobre as Forças Armadas, tendo sido também o primeiro civil diretor do Instituto de Defesa Nacional e depois ministro da Defesa, ter tido um pai militar acabou por marcar aquilo que é, explicando de certo modo o percurso que fez. "Talvez", responde, e acrescenta: "Nasci dentro de um quartel, portanto desde pequeno que convivi com os valores da instituição militar e naturalmente que isso deixa uma marca. Participamos e conhecemos os valores da instituição militar, portanto não me é estranha. Quando, mais tarde, a abordo do ponto de vista intelectual, como objeto de estudo, naturalmente que esse convívio com a cultura militar tem influência."

Foi ministro primeiro com António Guterres ("que me ligou eram cinco da manhã em Washington, onde dava aulas", lembra com um sorriso) e mais tarde com José Sócrates, mas continua sem ser militante do PS, apesar de admitir que se sente "próximo do partido do ponto de vista da ideologia". Vou para perguntar o que leva um académico a aceitar um cargo político quando nos trazem a carta de vinhos. E de repente surge mais um episódio que Nuno se lembra de contar: "Foi no meu tempo na Administração Interna. Queríamos baixar o limite da taxa de alcoolemia para tentar reduzir os acidentes. E logo o lobby dos produtores de vinho se mobilizou. E de entre todo o tipo de críticas, umas até engraçadas, houve até quem dissesse que eu bebia só Coca-Cola." Não é bem assim, diz a rir o historiador: "Gosto de beber um bom vinho à refeição, sobretudo se for uma ocasião social." Desafio-o a escolher e acabamos com um branco alentejano, um Esporão, que Nuno pede para ser servido bem fresco. Um copo só para cada. Pedimos também duas garrafas de água.

Voltemos então à passagem do académico pela política: "Eu não encaro a política como uma carreira, antes como um serviço. Nunca procurei desempenhar esses cargos mas quando esses desafios vieram nunca fugi a eles. A política, para mim, é o exercício da cidadania e dentro desse exercício, quando podemos ser úteis ao nosso país, somos. Foi o que fiz por duas vezes." E pode haver vantagens tanto como académico como enquanto político? - pergunto, depois de Nuno elogiar o Esporão, que acaba de bebericar. "Para quem na sua vida profissional, neste caso académica, se ocupa das questões do poder, de natureza política, diplomáticas ou militares, o exercício prático da política ajuda-nos a perceber como as coisas funcionam por dentro. Assim como a preparação teórica e metodológica nos ajuda a analisá-las. São duas situações que mutuamente podem ser rentabilizadas", responde sem hesitações, mostrando que há muito que refletiu sobre a questão, talvez logo em 2000, quando Guterres o convidou para o governo (com Sócrates, a entrada para o executivo foi em 2006).

O bacalhau está excelente, o atum pelos vistos também. E é hora de falarmos de História Militar de Portugal, editado pela Esfera dos Livros, e que começa ainda antes da independência, com João Gouveia Monteiro a tratar da era medieval logo a partir da entrega do Condado Portucalense a D. Henrique, pai do nosso primeiro rei. Francisco Contente Domingues assina depois o período até 1820. E a época contemporânea é da responsabilidade de Nuno Severiano Teixeira, a quem peço que me diga se é verdade que a bravura ao longo dos séculos do soldado português é verdade ou mito. "Verdade, sem dúvida", responde. "Há, ao longo da história militar de Portugal, uma constante de longa duração que é o valor militar do soldado português, a sua bravura, coragem e desempenho. O que flutua, o que varia com o tempo, são as formas de organização e a sua melhor ou pior organização. Estes 42 anos de democracia trouxeram às Forças Armadas duas ou três reformas que acrescentam ao valor militar do soldado português grande novidade: a profissionalização das Forças Armadas, que são adequadas àquilo que são os desafios de hoje, de grande tecnicidade, que não se compadecem com o serviço militar obrigatório de três meses; em segundo lugar, o planeamento e financiamento a médio e longo prazo dos equipamentos militares, portanto as leis de programação militar, que são uma forma completamente diferente da modernização das Forças Armadas daquilo que se fazia antes. E, talvez aquilo que é mais importante, que é a afirmação de uma cultura da organização profundamente democrática. Ou seja, os militares e a instituição militar funcionam dentro do quadro da democracia, com a subordinação dos militares ao poder político legítimo eleito."

Conto ao antigo ministro da Defesa que em finais de 2005 acompanhei o seu imediato antecessor, Luís Amado, numa visita às tropas portuguesas no Afeganistão e que, seguindo o que lá faziam na época os comandos e os paraquedistas, percebi que a bravura não era coisa do passado, tais os riscos na luta contra os talibãs. Nuno concorda e comenta que "as missões militares internacionais das Forças Armadas têm constituído, na história recente recente de Portugal, não só um fator de modernização e internacionalização, mas têm sido um dos fatores de maior prestígio externo. Isso deve-se às mudanças que as Forças Armadas foram tendo, à sua atualização dentro dos padrões que são os da NATO e UE, mas deve-se muito também ao valor militar do soldado português. Porque ainda hoje, nessas missões internacionais, elas são feitas na maioria dos casos sem constrangimentos, o que as valoriza extraordinariamente, do ponto de vista operacional". Traduzindo - digo eu - eles estão lá para o que der e vier. "Estão lá, dentro das regras de empenhamento que têm, mas atuando com uma grande liberdade e sem os constrangimentos que outras forças armadas colocam aos seus militares. Por exemplo, não saírem depois das cinco da tarde, não se afastarem da base mais de 50 km. Não. os portugueses atuam em todo esse espectro e isso dá-lhes um valor que é reconhecido pelas organizações como a NATO", diz.

Trazem-nos a carta das sobremesas. Nuno hesita. Confessa ser "apreciador de doces, sobretudo de chocolate". Há várias opções e acaba por, depois de esclarecido, pedir uma certa delícia de chocolate. Para mim, foi manga fatiada, uma descoberta recente mas que cada vez me convence mais. Estamos nisto de sobremesas quando digo ao meu convidado que tal como o pai dele, o meu também esteve na Guerra do Ultramar, em Moçambique. E que o meu sogro, esse, esteve em Angola. E que apesar de ser uma guerra politicamente condenada a ser perdida, pois o tempo dos impérios coloniais já passara, gostasse ou não Salazar, sempre li que quando o país começou a combater em três frentes surpreendeu o mundo pela capacidade de combate dos militares portugueses. Isso teve que ver com essa característica de bravos combatentes? - lanço como nova pergunta.

"Não só", responde. "Tem que ver com as características de combate mas também de organização e da própria doutrina. Durante esse período, as Forças Armadas portuguesas desenvolvem uma doutrina de contraguerrilha, que tinha como base o que se tinha passado no Vietname e na Argélia, mas que vai mais além. Depois as próprias Forças Armadas americanas e francesas vieram colher ensinamentos daquilo que foi a doutrina portuguesa", responde. Ou seja - acrescento eu - os portugueses mostraram-se excecionais em ações de contraguerrilha, no quadro do século XX? "Exatamente, criando uma doutrina própria e indo mais além do que aquilo que havia nas outras doutrinas, quer a americana quer a francesa. Isto independentemente do julgamento político que façamos da guerra. Estamos a falar de um plano estritamente militar", afirma.

Pedimos dois cafés e não quero que o almoço termine sem pedir ao diretor do IPRI, o Instituto Português de Relações Internacionais, que fale sobre o mundo atual, sobretudo se a China é um rival à altura dos Estados Unidos do ponto de vista militar. O historiador comenta saber que se trata de um interesse meu bem presente nas minhas análises no DN, que diz ler com regularidade. "E também o ouço às vezes a comentar política internacional na TSF", acrescenta. De ego reconfortado, bebo o café e tomo nota da reflexão do académico: "Bem, sem dúvida que a rivalidade internacional que se perfila nos próximos anos é entre os Estados Unidos e a China. As situações são diferentes, a diferentes níveis. Ou seja, do ponto de vista económico, a China tem tido um crescimento a um ritmo que faz que num prazo relativamente curto possa atingir e até ultrapassar, do ponto de vista económico, os Estados Unidos, portanto a competição neste momento é taco a taco. Do ponto de vista militar, a situação é um bocadinho diferente, porque apesar do grande investimento que a China tem estado a fazer em matéria militar, a distância do ponto de vista tecnológico e científico aplicado à defesa é tal que não se prevê que num prazo de 20 anos a China possa atingir o potencial dos Estados Unidos, um rival potencial mas ainda a uma distância muito grande. O que acho que é interessante perceber na conjuntura atual é o papel destas duas potências relativamente à ordem internacional. Até à administração Obama os Estados Unidos eram o líder incontestável e incontestado da ordem internacional multilateral, da ordem internacional liberal. O que assistimos com a chegada ao poder de Donald Trump é uma reversão dessa posição. Os Estados Unidos parecem não querer ter uma hegemonia internacional, ou senão uma hegemonia relutante e, pelo contrário, quem tem aparecido como grande defensor, o grande baluarte de uma ordem liberal do plano económico é a China. Portanto, de um lado o protecionismo, do outro o liberalismo, agora ao contrário. A China a defender uma ordem liberal e os Estados Unidos a defenderem uma ordem protecionista."

Não resisto e abordo também a Rússia de Vladimir Putin, que tenta refazer o poderio do tempo soviético, embora sem os mesmos meios e sem ideologia para exportar. O diretor do IPRI aceita o desafio: "Putin procura, desde que chegou ao poder, restaurar aquilo que é o lugar da Rússia na cena internacional e tem procurado fazer isso quer numa dimensão interna quer externa e as duas coisas não são separáveis. Na dimensão interna, é o percurso cada vez mais consistente e rápido em duração a um regime autocrático. Isso tem uma tradução internacional, que é em primeiro lugar restaurar a esfera de influência daquilo que era o império soviético e, em segundo lugar, procurar conquistar protagonismo internacional noutras áreas onde nunca o teve e isso hoje é incontestável no Médio Oriente. Não há solução para o Médio Oriente, hoje, sem a Rússia, coisa que há uma década não era verdade."

Despedimo-nos mas não sem trocar umas últimas palavras sobre os símbolos nacionais, que há um par de anos deram tema a um outro livro de Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar: história dos símbolos nacionais, também da Esfera. "Há uma lógica interessante no hino e na bandeira. O hino é um hino nacionalista que se republicaniza e a bandeira é uma bandeira republicana que se nacionaliza." E o facto de todos os regimes desde 1910 manterem estes dois símbolos reforçou a sua implantação. Hoje servem de referência, incluindo para esses bravos soldados portugueses que em breve partirão para o Afeganistão, para reforçar o contingente internacional que combate os talibãs.

Bica do Sapato

› 2 couverts

› 2 águas

› 2 copos de Esporão Reserva Branco

› 1 bacalhau fresco

› 1 naco de atum grelhado

› 1 delícia de chocolate

› 1 manga

› 2 cafés

Total: 85,75 euros

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