Brasil, entre o plebiscito e o golpe

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Para os povos do antigamente chamado Terceiro Mundo, a luta entre a barbárie e a civilização, a ditadura e a democracia, o reforço do unilateralismo e a possibilidade de uma ordem mundial multilateral, não se passa na Ucrânia, mas no Brasil. A guerra da Ucrânia é uma guerra intercapitalista, uma luta pelo controlo dos recursos estratégicos do mundo e pela redefinição do equilíbrio geopolítico saído da queda do Muro do Berlim e do fim do "socialismo real". O povo ucraniano é a primeira vítima dessa guerra. Se a mesma não for parada, todos os povos e países do mundo o serão, com consequências ainda inimagináveis ou talvez não.

Desde a primeira eleição de Lula para presidente do Brasil, em 2003, e além do inegável sucesso das políticas públicas que tiraram o país do mapa mundial da fome e reduziram algumas das suas desigualdades históricas, a maior nação de língua portuguesa começou a tornar-se pela primeira vez, pelo menos nos últimos tempos, um ator independente e autónomo na cena global. A experiência dos Brics, ainda inacabada, mostrou que é possível caminhos e políticas alternativas, no quadro da ordem capitalista reinante, permitindo a afirmação de potências regionais de desenvolvimento médio.

Essa hipótese não era, contudo, do agrado das oligarquias do Império atualmente hegemónico. Era imperioso desfazer os Brics. Do ponto de vista político-institucional, mais concretamente, do equilíbrio e do funcionamento do sistema político interno dos países que compunham o referido grupo, o Brasil era o mais fácil de atacar. Por isso, quando foi lançada a operação Lava Jato, a pretexto de combater a corrupção, comentei que, por detrás da mesma, estavam com certeza os interesses de poderosas forças internacionais que visavam destruir as multinacionais brasileiras, sobretudo do setor da construção, que na altura competiam em mercados como África, Médio Oriente e os próprios EUA. Isso hoje está provado.

Tais forças, a que as classes dominantes brasileiras se uniram alegremente, não hesitaram em eleger como presidente do país uma figura execrável, cuja governação, ao longo destes quase cinco anos do seu mandato, não merece outro adjetivo senão inqualificável. Lamentavelmente, setores alegadamente liberais e até alguns progressistas acreditaram e foram agentes dessa estratégia, em nome de um "antipetismo" que, na verdade, não passa de uma óbvia manifestação do pecado original das elites brasileiras: a mentalidade da "casa grande e senzala", que não lhes permite serem governadas por um ex-torneiro mecânico, mesmo que se trate de um dos últimos grandes estadistas vivos.

A cinco meses das eleições gerais, as notícias que todos os dias chegam do Brasil antecipam que a disputa prevista para 2 de outubro será, rigorosamente, um plebiscito entre a democracia e o fascismo, entre a boçalidade e a decência, entre a possibilidade de construir um Brasil aberto, plural, diverso, alegre e inovador e a resignação de manter no poder um outro Brasil, em que os seus velhos fantasmas e demónios estejam à solta. As pesquisas apontam, até agora, para uma nova vitória do presidente Lula da Silva, mas, como sabemos, eleições são como o futebol: "prognósticos só depois do jogo". O mais grave, entretanto, são as notícias acerca da possibilidade de Bolsonaro, apoiado por um grupo de generais, estar a preparar um golpe de estado para impedir as eleições ou reverter o seu resultado com a força das armas.

Num quadro destes, entre o plebiscito e o golpe, espero que os meus amigos brasileiros concordem que a hora não é para abstenções ou deixar de votar. Impõe-se, creio, uma ampla aliança, que vá do centro-direita à esquerda, para tirar o bolsonarismo do poder. Tudo indica que, neste momento, só um líder é capaz de costurar essa aliança.

Um Brasil livre do atraso, forte, democrático, capaz de modernizar-se de facto e com uma postura internacional autónoma é essencial para a construção de novos equilíbrios mundiais.

Escritor e jornalista angolano
Diretor da revista
África 21

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