Em "O Charme Discreto Da Burguesia", de 1972, talvez a mais icónica comédia surrealista de Buñuel, um dos personagens, Don Rafael, é embaixador da fictícia República de Miranda. No filme, o país sul-americano é retratado como um lugar desagradável, administrado por um militar autoritário..Um ano antes, Woody Allen realizou e protagonizou "Bananas", passado numa tal de San Marcos, república latino-americana liderada pelo General Emilio Vargas Molina..Sylvester Stallone reuniu um grupo de outras estrelas de filmes de ação para o descontraído "Os Mercenários", que gerou duas sequelas, todas já nesta década. No primeiro filme, o cenário é Vilena, um suposto país sul-americano sob as ordens do General Garza, onde a tortura é prática comum..Em "O Ídolo Roubado" (1935), pelo meio de aventuras e piadas, Tintim tem de investigar o roubo de uma peça com poderes sobrenaturais de uma tribo sul-americana. San Theodoros, o país saído da cabeça de Hergé, é governado por um militar, o General Alcazar, que reaparece noutros álbuns..Nos cinemas europeu e americano de referência, nos filmes de ação hollywoodescos ou na banda desenhada; tendo o surrealismo, a comédia ou a aventura como ponto de partida; nos anos 30, nos anos 70 ou já na segunda década do século 21, não há escapatória: a receita para tornar os países latino-americanos mais verosímeis aos olhos do espectador passa por umas gotas de tortura, umas colheres de sopa de autoritarismo e, generais, muitos generais, como ingrediente principal..Eis o cliché de uma república das bananas, eis o Brasil da ditadura militar de 1964 a 1985, eis o Brasil do presidente capitão Jair Bolsonaro, do vice-presidente general Hamilton Mourão e de mais nove ministros fardados..Entre os quais, o general Augusto Heleno, o ministro do gabinete da segurança institucional e principal conselheiro do Palácio do Planalto, para quem investigar o telemóvel de Bolsonaro, conforme sugestão do Supremo Tribunal Federal a propósito de interferências presidenciais na polícia, teria "consequências imprevisíveis" - e é bastante previsível o que ele quer dizer com "consequências imprevisíveis"..O general Luiz Fernando Ramos, ministro chefe da secretaria do governo, que sublinhou não haver risco de golpe militar no Brasil desde que, atenção, "a oposição não estique a corda" - ou seja, para negar a ameaça de um golpe, ameaçou com um golpe..E o general Eduardo Pazzuello, o paraquedista (literalmente) que assumiu o ministério da saúde em plena pandemia, em substituição de dois médicos que se demitiram por não aceitarem recomendar à população a ineficaz e perigosa (segundo 10 em cada 10 estudos sérios) hidroxicloroquina, o remédio de estimação de Bolsonaro..Na chegada ao cargo, Pazuello nomeou logo para a equipa da saúde quatro tenentes-coronéis, dois coronéis, dois majores, um capitão, uma primeira tenente, um tenente e dois subtenentes de infantaria. Mais tarde, indicou outros 12 fardados, num total de 25..No geral, o governo Bolsonaro reúne 2558 militares na ativa, um aumento de 32% em relação ao governo do antecessor, Michel Temer, uma expansão de 125% face ao primeiro mandato de Lula da Silva..E num momento em que milhões de trabalhadores brasileiros da iniciativa privada perdem empregos ou são atingidos por suspensões e cortes de salários, Bolsonaro aprovou um reajuste de até 73% na bonificação concedida aos militares das Forças Armadas que custará 26,54 mil milhões de reais em cincos anos ao país, de acordo com nota técnica do Ministério da Economia e dados do Ministério da Defesa, obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo por meio da Lei de Acesso à Informação..Entretanto, o capitão que "lidera" o Brasil numa semana chama um sanfoneiro amador para tocar uma Ave-Maria aos mortos na pandemia e na outra oferece hidroxicloroquina às emas que se passeiam no Palácio do Alvorada..Disso, nem Buñuel, nem Allen, nem Stallone, nem Hergé se lembraram - tornariam as suas obras demasiado inverosímeis aos olhos do espetador..Correspondente em São Paulo