Brasil a um ano das eleições mais "sangrentas" de sempre

Com três candidatos que não se toleram, Bolsonaro, Lula e, muito provavelmente, Moro, o sufrágio de 2022 pode tornar-se "um octógono de UFC", segundo cientista político.
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Bolsonaro odeia Lula, que abomina Moro, que renega Bolsonaro, que detesta Moro, que condena Lula, que despreza Bolsonaro. É este o ponto de partida das eleições do Brasil de 2022, consideradas tão definidoras como as de 1930 e de 1955 e até mais tórridas do que as de 1989, segundo especialistas. Na imprensa, não é invulgar encontrar expressões bélicas para descrever o cenário do país daqui a pouco menos de um ano. "Devemos estar preparados para uma guerra", resumiu o habitualmente circunspecto juiz Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Eleitoral, no jornal Valor Económico.

"Vai ser uma guerra sangrenta", escreveu, por sua vez, com todas as letras, o colunista Julian Rodrigues, da revista Fórum, conotada com a esquerda, a rematar artigo sobre o pleito.

Autora de livro dos bastidores do atual governo, a colunista do portal UOL Thais Oyama adverte que "Bolsonaro vem com a arma carregada" para a luta online. "Ou alguém duvida que um candidato que, para se eleger, ameaça incendiar a democracia e pegar fogo na economia hesitará em usar do terrorismo digital para evitar a derrota?", pergunta.

Crítica de Lula e de Bolsonaro, mas não de Moro, a jornalista Vera Magalhães escreve no jornal O Globo que "cada um desses pré-candidatos foi protagonista, à sua maneira, dos últimos sete anos da política brasileira, que configuram um período que poderia, grosso modo, ser chamado de Era da Lava-Jato". "Moro e Lula foram os antagonistas dessa peleja. O ex-juiz com características de justiceiro dominou a narrativa e a ação no tabuleiro entre 2014 e 2018, mas foi Bolsonaro quem correu por fora e se elegeu na esteira do efeito que a operação provocou na cena política. Lula experimentou um renascimento nos últimos dois anos, recuperando-se, graças à tragédia que é o governo Bolsonaro e às revelações da Vaza-Jato".

Três partes em confronto, portanto, numa situação vulgarmente chamada de mexican standoff ou "impasse mexicano", exemplarmente demonstrada na cena final de O Bom, o Mau e o Vilão, filme de Sergio Leone, de 1966.

Mas, afinal, as eleições de outubro do ano que vem - que ainda contam com Ciro Gomes, candidato sem papas na língua do PDT, João Doria como representante do histórico PSDB, e muitos mais - têm mesmo potencial para ser as mais quentes de sempre?

"As eleições de 2022 devem ter a pancadaria mais forte e os debates mais sangrentos desde 1989 [as primeiras eleições depois da redemocratização], vai ser um banho de sangue na televisão, como um octógono de UFC [organização de combates de artes marciais mistas], com Bolsonaro chamando Moro de traidor, Moro chamando Lula de corrupto e este se fazendo de vítima depois de ter sido, segundo o Supremo Tribunal Federal, injustamente condenado pelo ex-juiz", diz ao DN Vinícius Vieira, professor da Fundação Armando Álvares Penteado.

Para o cientista político, "são eleições que prometem ser quentes porque temos a possibilidade de ver no debate três pessoas que não se toleram, como Bolsonaro, Lula e Moro, se se confirmar a sua candidatura". "Será que Moro, que foi algoz de Lula, se vai aliar a ele contra Bolsonaro, será que Lula e Bolsonaro se unirão contra Moro, são dúvidas que tornam a campanha muito interessante".

"E Bolsonaro ou Moro, por estarem em desvantagem nas sondagens face a Lula, não têm alternativa a não ser ir aos debates, não pode ser como em 2018, quando Bolsonaro ganhou falando apenas para a sua bolha, uma bolha que se foi expandindo, expandindo até abarcar todos os insatisfeitos em geral", diz ainda.

Além de comparar com o sufrágio de 1989, quando se deram os primeiros confrontos televisivos no país, "entre Lula e Collor de Mello, entre Lula e Leonel Brizola, entre Mário Covas e Paulo Maluf, todos inimigos políticos", para Vieira, "as eleições de 2022 são tão definidoras quanto as de 1930, que iniciaram o Brasil moderno, e as de 1955, que confirmaram o legado de Getúlio Vargas".

"Em 1930, Getúlio Vargas quase derrotou Júlio Prestes, com fraudes de ambos os lados, num processo que acabou com uma revolução, e em 1955, na sequência do suicídio de Vargas, houve fragmentação entre três candidatos, numa época em que não havia segunda volta, acabando por ganhar Juscelino Kubitschek com menos de 40% dos votos", recorda.

Para Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, "desde 2018 temos uma novidade na política que é um extremista de direita, de discurso muito radicalizado, com viabilidade eleitoral". "E isso traduz-se numa campanha com mais polémica e radicalização", assinala.

Porém, a politóloga acredita que as circunstâncias políticas acabem por moderar naturalmente o discurso dos candidatos. "Bolsonaro tem cativo um eleitorado em torno de 25%, que partilha a visão radical de mundo dele, porém, esse segmento não é suficiente para ele se eleger, o que pode tornar necessária uma moderação do seu discurso".

"Mas a moderação", diz Mayra Goulart, "tem um limite". "Ele tem de se diferenciar dos candidatos da direita tradicional não radical, como Sergio Moro ou o candidato do PSDB, o João Doria". "Estes candidatos da direita tradicional, por sua vez, fizeram parte do bolsonarismo, logo não podem radicalizar o discurso e deverão fazer inflexões", acrescenta.

"Sobre Lula, o mais importante sublinhar é que ele não ocupa uma posição análoga na esquerda à que ocupa Bolsonaro à direita, está muito distante disso, ele apresenta-se como alguém de centro que defende os valores da democracia liberal e, como já conta com os votos de esquerda, o desafio dele é atrair os votos centristas, razão para o convite ao [ainda militante do social-democrata PSDB] Geraldo Alckmin para ser seu candidato a vice-presidente".

Nos bastidores, o frenesim a um ano da eleição é indicativo do que aí vem: além do namoro a Alckmin e outros nomes, Lula fez tour pela Europa; Bolsonaro foi ao Médio Oriente e, depois de dois anos sem partido, confirmou ontem a filiação ao Partido Liberal; e Moro, desde há semanas no Podemos, já lançou até o nome de Affonso Celso Pastore como seu guru económico para dar a entender ter mais do que a luta contra a corrupção na agenda.

Além deles, os senadores Simone Tebet (MDB), Rodrigo Pacheco (PSD) e Alessandro Vieira (Cidadania) também avançaram com as suas pré-candidaturas, assim como Luiz Felipe D"Ávila (Novo), Cabo Daciolo (Partido da Mulher Brasileira) e Leonardo Péricles (Unidade Popular). E Luiz Henrique Mandetta (União Brasil), ex-ministro da Saúde, fez questão de desmentir que esteja fora da corrida, como noticiado.

Na sondagem mais recente antes desta reportagem, a do PoderData, de quinta-feira, Lula pontua de 34 a 36 pontos, Bolsonaro oscila entre 27 e 29, enquanto Moro, com 8%, ainda está em situação de empate técnico com Ciro (7%) e Doria (5%), que superou Leite nas primárias do PSDB.

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