Braga. Uma conversa entre a Semana Santa e o mundo laico
Ponto prévio: esta breve viagem pela longa Semana Santa de Braga, que remontará ao século IV (313 é um ano mais ou menos consensual - é, portanto, mais velha do que a Sé de Braga: 1089), parte do vocábulo "misericórdia" para chegar a um ponto de encontro entre religiosos e laicos, entre civilizações, credos, cores e ideologias diversas. Entre um grande evento de massas e as encruzilhadas violentas do mundo do século XXI. Entre fé e humanismo. Ou seja, começa no coração - para aonde aponta "misereor" (compaixão, amor pelo próximo). Esta reportagem não é uma homilia, nem sequer uma lição de moral. É uma travessia pelo amor ao próximo. E esse não tem credo, cor, raça ou ideologia. Mas não deveria ter justiça, verdade, compreensão, convivência fraterna e tolerância?
"Misericórdia vem do latim miserere (verbo misereor). Ter compaixão. Ter pena deste povo que passa fome. É ter misericórdia para com o próximo. A ideia de misericórdia veio da ida de Maria [figura bíblica que representa a mãe de Jesus, mãe de Deus] a Isabel, que ia dar à luz S. João Baptista. Misericórdia é um caminho para a Páscoa", explica o jovial cónego emérito António Macedo, autoridade em matéria de misericórdia. É desde 1962 o reitor da Igreja da Misericórdia, a segunda mais antiga de Braga (é de 1562, quase meio século mais nova do que a Sé catedral, 1089). Antes ainda de ter estado em Roma a estudar (1966/1967, Curso de Psico-Pedagogia do Pontifício Atneu Salesiano).
António da Silva Macedo nasceu (e viveu - quase - sempre) em Braga, a 27 de maio de 1933, "ano santo, porque 33 era a idade de Cristo quando morreu", glosa o clérigo que está a 40 dias de cumprir 86 anos e que cursou Filosofia e Teologia no Seminário Conciliar de Braga. "Misericórdia nos tempos atuais? Todos os cristãos vivem a sua espiritualidade (mais individual) e liturgia (coletiva). Transportar o significado de compaixão para o quotidiano? Olhe: justiça, verdade, compreensão, convivência fraterna, tolerância...", prossegue.
Mais místico é o presidente da Comissão, inserida no Cabido da Sé (órgão central na Semana Santa: ver Glossário Elementar), que tem a responsabilidade de organizar a Páscoa em Braga. "A misericórdia é nós construirmos o nosso próprio coração a partir do coração de Deus. Tem toda a conexão com o que celebramos na Páscoa: bondade, misericórdia e o amor de Deus, oferecido por nós e derramado em nossos corações. É o grande mistério da Páscoa. É o centro da Páscoa. É a paixão de Cristo, entregue à esperança da ressurreição", observa o cónego Avelino Amorim (França, 1973), em estreia no cargo: substituiu em agosto de 2018 o cónego Luís Miguel Rodrigues, que aceitara pouco tempo antes o lugar de diretor adjunto da Faculdade de Teologia de Braga, impossibilitando-o de continuar à frente da Comissão.
Voltemos a misericórdia e à ligação desta ao mundo laico - Portugal é um Estado laico, recorde-se. "Refere-se também a uma pessoa de boa vontade. O Papa diz: eu falo para as pessoas de boa vontade; para a paz. E há muitos católicos que até nem percebem, mas há um profundo humanismo nesta forma de se dirigir ao mundo", desbrava o padre Macedo, como assina as missivas. E dá outro exemplo da ligação de uma celebração religiosa ao mundo não confessional: "Há muita gente que gosta de arte e vem para ver os costumes. O folclore".
"Transportar a misericórdia para o quotidiano não confessional? Fazer o bem e evitar o mal. É um princípio natural", sintetiza. E segue de pronto para as virtudes, que podem ter uma forte conotação católica, mas não só. "As virtudes têm ramos. A justiça é a árvore, um ramo é a verdade. As virtudes são orientadas pelos pontos cardeais, são as virtudes cardeais ou as virtudes humanas, porque são do humanismo e da fé. São a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança", regista um dos conselheiros do Arcebisbo de Braga, D. Jorge Ortiga. "Mas as virtudes regem-se pelos pontos cardeais e pelos pontos colaterais, Nordeste, Sudeste, Noroeste e Sudoeste, e todos os intermédios", finaliza.
A Semana Santa de Braga é já uma referência cultural e turística, envolvendo mais de cem mil visitantes e mais de 15 milhões de fluxo económico direto. O programa é extenso e não se restringe a eventos religiosos, que, obviamente, dominam o cartaz que se estende de 6 de março (concertos e cantatas) a 27 de abril (Cantata de Pascoela "Memória de Nossa Senhora dos Prazeres", no sábado de Pascoela, às 21h30, na Igreja do Seminário de S. Pedro e S. Paulo.