Braço ou rabo?

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A única liberdade que devemos ter em relação a vacinas é escolher entre o braço e o rabo. Esta coisa do sarampo deu-me para descobrir uma coisa - e não estou a falar dos cinco epidemiologistas em cada dez portugueses, seis contando agora comigo - que foi descobrir que as vacinas em Portugal não eram obrigatórias. É que na minha cabeça (braço e nádegas) vacina era de lei. Desde logo da lei do Estado, achava eu.

Então se nos obrigam a tudo e mais alguma coisa e se nos proíbem do que sobra, se para descanso da vizinhança não posso deixar os meus selvagens verem televisão no volume 35 depois das dez da noite, que descanso tem a vizinhança se eu tiver ali uma matilha de seis com tétano sujeito a morder-lhes, ou aos filhos, ao primeiro desentendimento sobre quem entra primeiro no elevador? E quem diz tétano diz outra doença evitável qualquer.

Mas não, parece que não é obrigatório vacinar as crianças, obrigatório é ter livro de reclamações num estabelecimento aberto ao público, fazer a inspeção ao carro, assinar conforme está no bilhete de identidade. Ah, e vacinar o cão contra a raiva, por uma questão de saúde pública e de proteção do bem-estar do bicho, coisas que naturalmente não são relevantes no caso dos humanos.

Mas também achava que havia uma obrigatoriedade da vacina num plano mais espiritual, ideológico. Ir à vacina, ou numa versão mais moderna ir às vacinas, é um ritual de pertença a um mundo civilizado. Vai-se ao posto (posto médico), expressão caída em desuso, primeiro expulsa pelo significante centro de saúde, e agora pela orgânica sigla USF, Unidade de Saúde Familiar (sim, há pessoas que dizem que vão à USF x ou y). E sim, o autor sabe a diferença técnica entre uma coisa e outra, mas não é disso que se trata agora. Trata-se, e o verbo foi escolhido não pelo estilo, que não tem, mas por se tratar de tratamentos, trata-se, dizia, de como as coisas são na boca da gente. E na boca da gente vai-se ao posto levar a vacina. A sala de espera, sempre com um quadro com os direitos fundamentais das crianças, um poster com um bebé Nestlé, naturalmente porque foi vacinado, eventualmente uma roda dos alimentos, um conjunto de crianças que não param quietas porque ainda não perceberam o que lhes vai acontecer, apesar dos guinchos da sala ao lado, e por fim uma voz enjoada num altifalante roufenho, a gente levanta-se e dirige-se a uma porta, por favor aguarde, que quando nos chamam para um sítio ainda não é e temos sempre de aguardar num compasso de espera deferencial à autoridade por detrás de uma barreira de pirilampos mágicos e calendários de anos passados, e depois lá se entra na sala, onde uma enfermeira, ou enfermeiro, trata de nós. Se é criança que lá vai ainda vai, é tudo sorrisos, mas se é adolescente ou adulto a coisa é mais séria, porque já não é suposto ter--se medo da pica e tem de se ter resposta pronta ao dilema vou aqui mostrar a minha bela nádega a estes senhores e a quem passar no corredor porque é sempre de porta aberta, ou vou andar com uma dor no braço três dias.

E por fim o boletim (que outro boletim é que há? Já nem os do totobola são boletins, nem os meteorológicos). Tenho muitas saudades do meu boletim, que em tempos foi substituído por um amarelo internacional para levar nas viagens e que agora não sei onde para depois de anos numa gaveta dentro de uma mica enrugada a aparecer sempre quando se procurava aquelas coisas que nunca aparecem (chaves de cadeados de malas, pilhas ou aquela peça para remover as irritantes tampas das tomadas que se compram quando se tem os primeiros filhos, que os outros já nascem vacinados contra a eletrocução).

É claro que as vacinas deviam ser obrigatórias - e isto não quer dizer encarcerar os pais violadores da regra numa cela com seis violadores de pessoas durante seis meses, nem retirar crianças aos pais porque se atrasam na do sarampo. Talvez não todas, mas pelo menos parte delas, na medida em que a tendência do ser humano para descobrir novas vacinas pode não justificar que todas sejam obrigatórias (por exemplo, se houver já, ou vier a haver uma vacina contra o pé-de-atleta não me parece que faça sentido ser obrigatória - mas questão diferente é se o Holmes Place poderia exigir essa vacina para ser membro). Mas o Estado é que sabe.

O meu libertalismo (alguém que uns dias acorda liberal, outros libertário) gosta pouco do Estado mandar-me fazer coisas em geral, sobretudo coisas desnecessárias ou imbecis; aliás tem como uma das ideias centrais eu poder fazer todas as coisas desnecessárias ou imbecis que quiser desde que não prejudique (muito) os outros. Mas para fazer coisas imbecis ou desnecessárias ajuda não estar na cama com difteria ou com hepatite B (na cama em vários sentidos, e tudo em tese, claro). E quem sabe disso tudo é o Estado - se o Estado não serve para saber que vacinas eu tenho de tomar não serve para nada (sim Foucault, Naissance de la Clinique, a saúde pública como forma de afirmação do poder do Estado). Saber sobre vacinas é algo que apenas cabe ao Estado como corpo organizado de receção e produção de conhecimento científico e de proteção das pessoas umas das outras, de si próprias e dos seus pais. Não a cada um de nós, cuja opinião isolada sobre vacinação é irrelevante e perigosa. Como esta agora a seguir.

Eu até acho mal os filhos, meus e vossos, já não serem vacinados contra a tuberculose, vacina que segundo o boca-a-boca está esgotada nas farmácias, mas que segundo uma excelente apresentação da Direção-Geral da Saúde disponível online, sobre o Plano Nacional de Vacinação 2017, apenas é recomendada para grupos de risco. É que não apenas tinha nome de consultora (BCG), como tinha aquela coisa de poder fazer reação, ter de se ir medir o caroço. O pior era a marquinha, que às vezes era uma marcona, chaga da tribo do mundo desenvolvido. Por falar nisso ia jurar que quando comecei a trabalhar em 2000, como assistente estagiário da Universidade de Lisboa, era preciso ter a BCG em dia e apresentar uma micro. Talvez para a função pública as vacinas fossem obrigatórias. Não sei se ainda é, mas também não tenho tempo de ver agora porque vou levar as miúdas a um parque de diversões, o que estatisticamente é mais perigoso do que o tétano, mas lá está, são os tais paradoxos da liberdade.

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