As buzinas continuaram a ouvir-se nas cidades argelinas, mas desta vez para expressar a alegria e a esperança num novo rumo para o país. Uma multidão de todas as classes sociais e idades saiu à rua em ambiente de festa enquanto os automobilistas buzinavam. O presidente Bouteflika anunciara que não concorria às próximas eleições. "Os nossos protestos deram frutos. Vencemos os apoiantes do quinto mandato", disse o motorista de táxi Mohamed Kaci, de 50 anos, à Reuters..O quinto mandato é a referência à intenção anunciada há um mês de que Abdelaziz Bouteflika, eleito pela primeira vez presidente em 1999 (concorreu sozinho), iria candidatar-se pela quinta vez. Em vez disso, o líder argelino recebeu o primeiro-ministro demissionário, ouviu o chefe do Estado-Maior do Exército, assinou dois decretos (adiamento das eleições previstas para 18 de abril e criação do posto de vice-primeiro-ministro) e dirigiu-se à nação através de um comunicado noticiado pela agência APS.."Não haverá um quinto mandato e nunca foi uma questão para mim, o meu estado de saúde e a minha idade atribuem-me como meu dever último para com o povo argelino a contribuição para as fundações de uma nova república", anunciou..Nesse sentido, Bouteflika adiou as eleições sine die e anunciou a criação de uma conferência nacional, que terá como presidente uma "personalidade nacional independente, consensual e experiente". Daqui vai sair uma reforma do sistema político e a elaboração de uma nova Constituição, que terão de ser concluídas até ao fim do ano. No final, a proposta deverá ser referendada. Só com o processo concluído é que existirão eleições presidenciais. ."Compreendo a mensagem", diz Bouteflika."A Argélia atravessa uma fase delicada da sua história. No dia 8 de março, pela terceira sexta-feira consecutiva, grandes manifestações populares foram realizadas em todo o país. Tenho acompanhado estes desenvolvimentos e compreendo as motivações dos muitos compatriotas que escolheram este modo de expressão, cuja natureza pacífica gostaria, mais uma vez, de saudar", começou por dizer na mensagem à nação.."Compreendo particularmente a mensagem transmitida pelos jovens, tanto em termos de angústia como de ambição para o seu próprio futuro e o do país", prosseguiu. "Compreendo também o fosso que pode ter causado preocupação entre, por um lado, a realização das eleições presidenciais numa data tecnicamente adequada como um marco na governação da vida institucional e política e, por outro, a abertura, sem atrasos indevidos, do vasto projeto, que constitui uma prioridade política elevada, para conceber e aplicar reformas profundas nos domínios político, institucional, económico e social, com a mais ampla e representativa participação possível na sociedade argelina, incluindo a partilha justa a dar às mulheres e à juventude.".Bouteflika recebeu também o chefe do Estado-Maior do Exército Ahmed Gaid Salah. Uma mensagem para o país de que os militares continuam com o chefe do Estado. "Posou com ele diante das câmaras de televisão públicas para dizer à opinião nacional e internacional que a decisão foi tomada com o acordo do exército", releva o jornalista argelino Oualid Medaouar. Relembra que o exército representa a "coluna vertebral da República" e que um período de transição sem a sua participação "é uma escolha difícil de compreender".."O círculo presidencial composto pelos seguidores do presidente (incluindo membros da sua família) quer tornar este período de transição uma realidade, mas com apenas uma garantia, a organização de uma conferência nacional com a participação de todas as figuras políticas do país", prossegue..Mudanças no governo.As mudanças dão-se também na estrutura do governo. O primeiro-ministro Ahmed Ouyahia apresentou a demissão, após ano e meio nessas funções. Para o seu lugar foi nomeado Noureddine Bedoui, ministro desde 2013, primeiro como ministro da Formação Profissional, desde 2015 como ministro do Interior. E para o posto de vice-primeiro-ministro recém-criado vai o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ramtane Lamamra.."Será um governo composto por tecnocratas, porque sob a sua supervisão terá lugar a conferência nacional", comenta Medaouar, correspondente do Al Hayat, de Londres, e da agência italiana Agenzia Nova..Depois de duas semanas de hospitalização na Suíça para "exames médicos", o presidente Bouteflika, de 82 anos, regressou no domingo a uma Argélia mergulhada em manifestações pacíficas e que, dia após dia, viram mais pessoas e setores da sociedade juntarem-se. Aos estudantes uniram-se os trabalhadores assalariados e a estes juntaram-se advogados, juízes e até um grupo de imãs se rebelou contra o regime, tendo anunciado que não iriam continuar as prédicas elogiosas ao líder do país..O homem que aos 19 anos foi lutar pela independência da Argélia de França e que teve como prioridade alcançar a paz em 1999 não deixou que os protestos descambassem para fora de controlo. Ainda que para tal optasse pelo adiamento das eleições, uma medida inconstitucional, mas vista como um mal menor..Saída honrosa."Bouteflika decidiu optar pela prorrogação do seu mandato presidencial, que é inconstitucional, a fim de assegurar, de acordo com as suas afirmações, uma transferência pacífica de poder, pois sabia perfeitamente que mais ninguém pode assumir esta responsabilidade. Além disso, tinha também de convencer os partidos da oposição, que pretendem a sua retirada definitiva, de que este período de transição será gerido por um governo de unidade nacional. É certo que o prolongamento do mandato presidencial constitui uma violação da Constituição, mas Bouteflika permite-se optar por esta opção para garantir uma saída honrosa do poder", analisa Oualid Medaouar.."Está acabado, Abdelaziz Bouteflika não terá mais influência nos acontecimentos. Já não está em condições de o fazer. De qualquer dos modos, a sua candidatura era uma ficção. É o seu irmão, Saïd, quem dirige o país", disse por sua vez Pierre Vermeren, autor de várias obras sobre o Magrebe, ao Le Figaro ..Em 2013 um acidente vascular cerebral (AVC) deixou Bouteflika hospitalizado durante 80 dias. Desde então ficou diminuído. Só nove meses depois apareceu em público, de cadeira de rodas. Foram cada vez mais raras as suas aparições públicas e cada vez mais periódicas - sete - as deslocações a Grenoble, França, e a Genebra, Suíça, para tratamentos e exames médicos. No dia 7 de março o seu diretor de campanha afirmara que o seu estado de saúde "não inspira inquietação"..Estagnada há duas décadas no seguimento da guerra civil que atravessou os anos 1990 até ao início do século XXI, a Argélia vive sob o controlo dos militares e dos serviços de informações. A estabilidade e a paz a qualquer preço foram os objetivos de quem sofreu na pele um conflito que deixou entre 100 mil e 200 mil mortos. Mas as novas gerações querem mais, exigem que a riqueza criada pela exploração do gás natural - Portugal é um dos clientes - e do petróleo seja dividida pelos mais de 42 milhões de habitantes. E querem reformas. Os argelinos, que na ótica de Oualid Medaouar demonstraram "grande maturidade", ao reivindicar os seus direitos num clima pacífico e cívico, exigem "o estabelecimento de um Estado de direito, um Estado democrático baseado em características republicanas".."Os argelinos que rejeitaram o quinto mandato de Bouteflika querem uma mudança no sistema, uma mudança que conduza a profundas reformas económicas e políticas", conclui o jornalista.