Boulez, o homem que teve o mundo da música a seus pés
Na primavera passada, o mundo da música engalanou-se para receber os 90 anos de Pierre Boulez (26 de março era a data). Com os 80, e já antes com os 75, passara-se algo de similar, mas a subida da fasquia etária criava uma sensação de urgência face ao inelutável, que as condições de saúde precárias - e a cegueira, que o afastara desde 2013 da vida musical ativa - reforçavam.
Anteontem aconteceu, enfim, o que se adivinhava. Quase 91 anos completos é quase um século e a vida de Pierre Boulez marcou o seu século (o XX) e o início do nosso. Com Boulez estamos diante da personalidade mais marcante e influente que a música da tradição erudita ocidental conheceu desde o final da II Guerra Mundial. Como compositor, como maestro, como pensador, Boulez moldou o tempo em que viveu. Ele surgiu como porta-bandeira das vanguardas musicais do pós-II Guerra Mundial, expondo a sua veia de polemista e enfant terrible da nova (então) criação musical. O inesperado é que Boulez se viria a tornar, paradoxalmente, um verdadeiro spiritus rector da nova música, transportando essa aura para a sua atividade de chefe de orquestra, que foi adquirindo preponderância com o tempo - embora não tenha nunca deixado de compôr (tinha uma prática muito peculiar do conceito de work in progress), como também não de pensar a música.
António Jorge Pacheco, diretor da Casa da Música, fala do "fim de uma época". Conheceu Boulez na Porto-2001 e lembra "a sua enorme abertura de espírito e curiosidade intelectual". A comprovar a primeira, recorda quando respondeu: "O último Verdi, mas agora já é tarde para mim" à pergunta do compositor que lhe faltava dirigir. E lamenta o grande "quase" que foi o Porto para Boulez: "ele aceitou ser Artista em Residência na Casa da Música em 2012", o que a deterioração da sua saúde viria a impedir; e o que poderia ter sido um verdadeiro happening: "ele disse que queria dirigir o Remix Ensemble e fazer com eles a estreia mundial da versão final de Répons [obra maior de Boulez] na Casa da Música"!
"Répons e Rituel in memoriam Bruno Maderna são obras-primas absolutas, inquestionáveis", responde o compositor António Pinho Vargas, questionado sobre as obras de Boulez que mais admira. Mas a sua admiração estende-se aos outros domínios de atividade do francês (António haveria de dizer: "tiro o chapéu às suas três facetas"...): "Jalons e Leçons de Musique são livros extraordinários, dos melhores livros sobre música jamais escritos, e de uma notável qualidade literária" que fazem de Boulez "um pensador de um patamar extraordinário". E do maestro refere "a excelência reconhecida" que pôde verificar nos "vários concertos dirigidos por ele a que assisti ao longo da minha vida".
Mais crítico é Pinho Vargas em relação ao "homem que em determinado momento pareceu ter excesso de poder" e que "teve um estatuto e autoridade tais que a sua mundivisão individual se tornou numa partilhada por toda a gente na música contemporânea", e isto a uma escala "quase universal".
Várias facetas no homem, também, portanto, que, juntas fazem Boulez "pairar como um gigante na segunda metade do século XX", alguém que "marcou o seu tempo como nenhuma outra personalidade pode reclamar para si".
Critica "a velocidade com que desaparecem das salas de concerto por todo o mundo as obras de Berio, Ligeti, Stockhausen, Xenakis, Nono", esperando que as de Boulez não sofram o mesmo destino.
"Conhecemo-nos em 1991, quando eu cheguei ao IRCAM [Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique, criado em Paris, em 1977]", recorda Risto Nieminen, diretor do Serviço de Música da Gulbenkian [que dirigiu o IRCAM]. Surpreendeu-o no primeiro almoço: "só falou de gastronomia e de coisas normalíssimas. Nada de música"; dentro do IRCAM: "tratava todos por igual, fossem simples funcionários, fossem cientistas, sempre caloroso e sociável"; no trabalho: "a mente dele estava sempre ativa e, se era perfeccionista nos ensaios, era também muito paciente e compreensivo". Fala de um compositor "para quem não havia uma obra definitiva, fixada. A obra, para ele, tinha vida e podia sempre expandir-se, como algo orgânico; era um processo, não um ato".
A última vez que se viram "foi em novembro de 2012, em Paris, num concerto. Estava já muito alquebrado e parecia ausente, quase em torpor, mas bastava um 'impulso' para mostrar a lucidez de sempre!"
Felizes nós, que fruímos tão longamente da sua intensa luz. Requiescat in pace.
Pierre Boulez esteve em Portugal, a instâncias da Fundação Gulbenkian, nos anos de 1985, 1990, 1999 e 2003 (assistimos às três últimas datas) e, no Porto, em 2001, sempre na companhia do seu Ensemble InterContemporain [ensemble residente do IRCAM]. Mas em 2003, visitara meses antes (a 1 de maio) a Igreja dos Jerónimos, onde dirigiu o Concerto da Europa da Orquestra Filarmónica de Berlim, tendo por solista Maria João Pires. Foi aí que nos encontrámos, minutos antes do concerto (a que também assistimos). Boulez esteve sempre muito descontraído, cordial e disponível, adotando um tom conciliatório face à sua "fase incendiária" juvenil; e o costumeiro tom perentório e objetivo face a tudo o resto. Desse encontro resultou esta entrevista:
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