A covid-19 ficará como uma cicatriz na história da Humanidade, mas um dos dias que marcará este século será 24 de Fevereiro de 2022. Num só golpe, Putin pulverizou as esperanças de se chegar à neutralidade carbónica em 2050 e com isso aumentou a velocidade vertiginosa com que o planeta se está a destruir. Porque agora a prioridade volta a ser o gás natural, o petróleo e o carvão. O nuclear surge de novo na lista dos grandes investimentos, privando as energias limpas de aceder a capital para novas tecnologias. Simultaneamente, as 12 maiores petrolíferas mundiais investem 100 milhões de dólares por dia para encontrar mais jazidas de gás e petróleo. E todos nós somos apenas chamados para pagar a conta - qualquer que ela seja..A investigação recente do The Guardian classifica de "bombas de carbono" todos os investimentos capazes de extrair petróleo e gás num total de um bilião de toneladas de carbono durante o seu ciclo de vida. Ora, para se compreender a diferença entre a realidade versus as declarações, retumbantes, dos chefes de Estado nas grandes cimeiras anuais do Ambiente (a COP), acrescente-se este facto: há 195 novas "bombas de carbono" espalhadas pelo mundo, 60% das quais já começaram a emitir. Em conjunto, são iguais a 18 anos de emissões de todo o planeta..Por detrás da retórica paranoica do líder russo, é cada vez mais evidente o racional cristalino da operação ucraniana: as jazidas de metais raros, os cereais, mas sobretudo o golpe da hiperinflação das energias fósseis e a perpetuação do modelo carbónico atual - o único que pode salvar a Rússia do colapso. Porque não é preciso o Ocidente humilhar a Rússia. Ela está em autodestruição pela ultra especialização num modelo económico de exportação de combustíveis com fim à vista..É por isso confrangedor ver tanta gente com medo de um enfrentamento nuclear (apesar de tudo altamente improvável), esquecendo a catástrofe garantida que é esta guerra lenta. Não apenas pela fome que provoca nos países mais vulneráveis, ou a contestação de rua nos países democráticos, mas sobretudo pela total perda de controlo das emissões planetárias que nos farão entrar num mundo apocalíptico. Ainda esta semana António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, voltou a fazer, de forma desesperada, um apelo a todos os líderes para que enfrentemos o maior problema da história do homo sapiens: a destruição de fino equilíbrio climático que nos deu esta vida incrível na Terra..A guerra de Putin disseminou a legitimidade dos países em regressarem à teoria da autossuficiência energética. Com isso, o "business as usual" voltou. Os Estados Unidos vendem finalmente o seu gás de xisto que parecia na falência, os árabes regressam aos jackpots (recorde-se que a Saudi Aramco é a empresa n.º 1 do mundo), os russos duplicam as receitas, os regimes africanos e sul-americanos que sobrevivem do petróleo beijam agora as mãos a Putin. E os europeus acham que o nuclear resolve alguma coisa, apesar de precisarmos de quase 20 anos para montar uma central - e ser claro que também há uma enorme escassez de urânio, já para não falarmos da segurança civil e militar e, sim, o problema com os resíduos..Quem pode mudar este sistema? Sobram os pioneiros das renováveis - agora com muito menos capital disponível para investir. E talvez possa haver um sobressalto categórico das novas gerações, jovens russos incluídos. No entanto, se nada de impactante acontecer, 24 de Fevereiro condena-nos a pelo menos mais 50 anos de escravidão energética. E à catástrofe climática.. Jornalista