"É a primeira vez que ocorre comportamento antecipado para tentar impedir a chegada das delegações, é uma forma clara de condicionar uma manifestação", disse Sonia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). A líder índia referia-se à decisão do governo brasileiro de extrema-direita de pedir a presença da Força Nacional na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes, em Brasília, durante o 16.º Acampamento Terra Livre, encontro anual de oito a dez mil indígenas, que decorre de hoje a sexta-feira..A medida foi solicitada no dia 17 pelo general Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, que a autorizou. O intuito, disse Heleno, é "desencorajar violência em atos". "É uma medida de carácter preventivo e tem como objetivo garantir a segurança do património público, os ministérios e os seus funcionários", consta de uma nota do gabinete..Em comunicação semanal ao país, o presidente Jair Bolsonaro acusou os organizadores do acampamento de usarem verbas públicas para a realização do evento. "Vai ter um encontrão de índios agora. Estão prevendo dez mil índios aqui em Brasília. E quem vai pagar a conta dos dez mil índios que vêm para cá? É você [contribuinte]. Nós queremos o melhor para o índio brasileiro, que é tão ser humano quanto qualquer um que está aqui na frente de vocês agora, no entanto, essa farra [uso de dinheiro dos contribuintes] vai deixar de existir no nosso governo", disse em live na rede social Facebook..Guajajara, que foi candidata à vice-presidência da República em outubro na lista encabeçada por Guilherme Boulos, do PSOL, de extrema-esquerda, desmentiu Bolsonaro. "Nós nunca tivemos financiamento público ou apoio do governo federal, todos os anos fazemos uma campanha de arrecadação para promover o encontro e instalar o acampamento, é dinheiro de quem contribui com as causas indígenas: pessoas e organizações da sociedade civil, do Brasil e do estrangeiro.".A líder da APIB, que cresceu na Terra Indígena Araribóia, entre a tribo Guajajara-Tenetehara, se formou em letras e se pós-graduou em Educação na Universidade Estadual do Maranhão, mesmo filha de pais analfabetos, acrescentou que o acampamento decorrerá no mesmo local de sempre, desde 2004, apesar da presença da Força Nacional. "Vamos para a Esplanada dos Ministérios mesmo porque não há motivo para nos escondermos, são eles que nos estão ameaçando", prometeu..Na imprensa, a decisão do governo foi criticada. "Ao justificar que o objetivo é 'desencorajar violência em atos', o governo mostra uma visão enviesada a respeito de manifestações da sociedade civil e deixa claro que protestos que não sigam a sua ideologia, nem batam palmas para a sua cúpula, são casos de polícia", defendeu o colunista do portal UOL Leonardo Sakamoto..Para o teólogo e escritor de esquerda Leonardo Boff, "as espingardas têm medo das flechas". "Total fraqueza do atual governo que coloca em Brasília a Força Nacional por medo dos índios que irão à capital. As espingardas temem as flechas. Se este país tem donos originários são os indígenas e não os imigrantes como os Bolzonaro (com z) que aqui chegaram no dia 22 de abril de 1888", escreveu Boff na rede social Twitter..O encontro mantém a agenda tradicional - fortalecer a identidade indígena e unificar o discurso de quase 800 líderes - mas acrescenta reivindicações novas, decorrentes da política do atual governo, considerada hostil aos índios. Nomeadamente, em relação à mudança de tutela da Fundação Nacional do Índio, o órgão que tutela a política indigenista, do Ministério da Justiça para o dos direitos humanos e a alteração de atribuição de demarcação de terras indígenas para a pasta da agricultura.."O novo governo está violando direitos indígenas com a medida provisória 870 [a que passa a demarcação para o Ministério da Agricultura], ameaçando diminuir terras indígenas e facilitar para que terceiros explorem os recursos naturais que existem nas nossas terras. O que ele esperava? Que os povos indígenas ficassem quietos? Se são dez mil índios, são dez mil insatisfeitos com o que está acontecendo", disse Joênia Wapichana, do Rede Sustentabilidade, primeira mulher indígena deputada e primeira também a exercer advocacia no Brasil..Para Guajajara, o discurso de Bolsonaro de integrar as comunidades índias na sociedade também é errado. "Eles dizem que temos de ser integrados para sermos cidadãos mas nós não pedimos isso.".Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, vivem hoje no Brasil perto de 900 mil indígenas, cerca de 60% deles em áreas rurais, de 240 povos diferentes, em cerca de 0,47% do território do país.