Bolsonaro pode mesmo fazer um (auto)golpe de estado?
"O problema não é mais "se" haverá uma rutura institucional mas "quando"", disse o deputado federal Eduardo Bolsonaro em comunicação pela internet no dia 27 de maio.
A frase do filho de Jair Bolsonaro soma-se à interpretação do próprio presidente da República do artigo 142 da Constituição Federal do Brasil que fala no uso das forças armadas para restabelecer a lei e a ordem. "Havendo necessidade, qualquer um dos poderes pode pedir-lhes que intervenham para restabelecer a ordem no Brasil", sublinhou numa reunião ministerial.
E à nota do general Augusto Heleno, ministro da segurança institucional e principal conselheiro do presidente, para quem apreender o telemóvel de Bolsonaro, conforme fora sugerido no contexto de uma investigação sobre as suas interferências na polícia federal, "poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional".
E ainda ao aviso aos adversários do ministro da secretaria da presidência, o general na ativa Luiz Eduardo Ramos, "para não esticarem a corda...".
Nas manifestações dominicais de apoiantes do governo em frente ao Palácio do Planalto, lê-se em dezenas de faixas frases como "intervenção militar já, com Bolsonaro presidente" e "fechem o STF e o CN", as siglas de Supremo Tribunal Federal e de Congresso Nacional, representantes dos outros poderes da nação.
Posto isto, afinal o Brasil corre o risco de um golpe - ou "autogolpe", semelhante ao que Alberto Fujimori fez no Peru em 1992, fechando o Congresso e intervindo no poder judiciário, dois anos depois de ter sido eleito democraticamente - ou não?
Forças da oposição e académicos ouvidos pelo DN, em síntese, dizem que "onde há fumo, há fogo".
Desde logo, os líderes dos outros poderes resolveram intervir. "Não há lugar para um quarto poder: as Forças Armadas sabem muito bem que o artigo 142 da Constituição não lhes dá o papel de poder moderador", advertiu o presidente do STF Dias Toffoli, no dia 9.
Antes, Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, pronunciara-se, por nota, no mesmo sentido: "O artigo 142 da Constituição não autoriza a realização de uma "intervenção militar constitucional", ainda que de caráter pontual".
Para o Partido dos Trabalhadores (PT), entretanto, o risco de "autogolpe" existe, segundo José Dirceu, braço direito de Lula da Silva no seu primeiro governo e entretanto condenado e preso no Escândalo do Mensalão. "O militarismo está de volta e a politização das forças armadas será inevitável, se não reagirmos e não dermos um basta a toda e qualquer ação militar fora dos marcos da Constituição".
"Frente à crescente reprovação de seu governo pela maioria do país e ao aumento do apoio popular ao seu impeachment, Jair Bolsonaro não deixa dúvidas de que pretende dar um "autogolpe" de Estado", continuou Dirceu em texto.
Para Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula no Planalto, "as forças armadas não estão preparadas para um golpe mas podem ser levadas a isso". Em live promovida pelo jornal Valor Econômico desabafou: "Tenho a sensação de que podem ocorrer coisas desagradáveis. Coisas muito desagradáveis vão começar. No ano que vem faço 90 anos. É muita idade. A esta altura, ter que encontrar um paredão [em referência aos locais de fuzilamento] outra vez... É duro".
Em transmissão pelo Twitter o ex-candidato presidencial Ciro Gomes disse, em resposta a um ouvinte sobre a possibilidade de "autogolpe", que "não há a menor dúvida de que na cabeça de Bolsonaro está esse despropósito sim".
O ex-ministro da justiça Sérgio Moro também falou sobre o tema em conferência na internet: "Na verdade, nem deveríamos estar discutindo essa possibilidade, isso é péssimo para o país, para o combate à epidemia, para a economia, são arroubos retóricos, que, com todo respeito ao presidente, não deveriam existir".
Os "arroubos", como classifica Moro, vêm sendo repetidos em todo o mandato do presidente - ou até antes. Desde logo, pelo vice-presidente Hamilton Mourão que, a um mês das eleições, previu a possibilidade do "autogolpe". "O próprio presidente é o comandante-chefe das Forças Armadas, ele pode decidir empregar as Forças Armadas, um "autogolpe"".
Eduardo Bolsonaro e o ministro da economia Paulo Guedes citaram em novembro passado o Ato Institucional Número 5 (AI5), decreto de 1968, em plena ditadura militar, que determinou o fecho do Congresso e institucionalizou a tortura e a censura. "Se a esquerda radicalizar [for para as ruas] a gente vai precisar de uma resposta e essa resposta pode ser via novo AI5", disse o deputado. "Não se assustem se alguém pedir o AI5", afirmou o ministro.
O vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente que gere a comunicação do governo, chegou a afirmar, dois meses antes, que "por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos".
Ao longo da sua carreira parlamentar, Jair Bolsonaro ficou famoso por dizer em programas de televisão coisas como "pau de arara funciona, sou favorável à tortura e o povo também". O pau de arara é um instrumento de tortura, de uso comum durante a ditadura militar brasileira, que consiste numa barra de ferro atravessada entre os punhos amarrados e a dobra do joelho do preso, que é submetido depois a eletrochoques e afogamentos.
Para Romualdo Pessoa, especialista em geopolítica da Universidade Federal de Goiás, "o histórico no Brasil e na América Latina deixa sempre uma preocupação com estas instabilidades institucionais e, neste momento particular, até pela atitude provocativa do atual presidente, vive-se essa instabilidade".
"Na América Latina, governos que se opuseram à linha dos Estados Unidos caíram ou por golpes militares ou pela guerra híbrida e foram substituídos por governos fracos, como o de Bolsonaro. E, por ser fraco, o governo Bolsonaro, que é servil aos Estados Unidos, para se fortalecer ampara-se nos militares em postos estratégicos", continua em conversa com o DN.
"Como ele não tem em seu redor gente preparada, o suporte dele são os militares, que ele vai nomeando para todos os lugares e funções, porque, sendo esquizofrénico, não confia em mais ninguém e vai demitindo quem se destaque mais do que ele... Vamos ver até quando resistem o Congresso e o STF".
Além do já citado caso de Fujimori, desde a segunda guerra mundial há registos de tentativas de "autogolpes" na Bolívia, no Equador, no Uruguai, na Venezuela, na Guatemala ou em El Salvador, por exemplo.
No Brasil, o mais conhecido é o dado por Getúlio Vargas, em 1937.
"Não há fumo sem fogo", diz Vinícius Vieira, cientista político da Faculdade Getúlio Vargas ao DN. "Se são apenas fanfarronices do presidente, é grave de qualquer forma que ele as provoque em plena maior crise da nossa história de 200 anos. Bolsonaro tem o hábito de testar as instituições, lançar balões de ensaio, ver se colam e depois fazer mea culpa, a seguir repete os mesmos pecados e vive nisso".
"Ele, com tantos elogios à ditadura no passado, gostaria de implantar uma, se bem que não assumida, um autoritário nunca assume, numa adaptação de Luís XIV, ele diria qualquer coisa do tipo "la démocracie c"est moi"".
O risco ganha forma sobretudo por causa da influência de Bolsonaro sobre a polícia. "Ele divulgou uma ideia equivocada do artigo 142 que fala no uso das forças armadas para manter a lei e a ordem, ora se somarmos isso a um apoio de parte das forças armadas e sobretudo da polícia militar, instituição em que o bolsonarismo está mais enraizado apesar de ser tutelado pelos governos estaduais, nós podemos sim ter um golpe de estado", prossegue.
E conclui: "Ele cria dificuldades para vender facilidades, quer ambiente de instabilidade e confronto para aparecer como salvador da pátria, o que é apelativo aos mais pobres, que, numa situação de crise económica e de fome nos próximos meses, podem vir a apoiar uma aventura autoritária".