Bolsonaro oferece cargos a investigados por corrupção para se blindar de impeachment

De forma a ter votos suficientes para evitar a deposição, o presidente cede poder e orçamento públicos a grupo de deputados condenados no Escândalo do Mensalão e não só. Evitar a prática conhecida como "toma lá dá cá" era, no entanto, o pilar da sua campanha pela "nova política"
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Fernando Marcondes de Araújo Leão é o novo diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, com salário de 17 mil reais. Comandará um orçamento de 2,1 mil milhões de reais, dos quais, 265 milhões estão livres para investimentos. A notícia da nomeação, aparentemente só mais uma de entre tantas publicadas no Diário Oficial da União, assinala, porém, a aliança entre Jair Bolsonaro, o presidente eleito contra a "velha política", e... a "velha política".

A indicação de Leão foi sugerida ao governo pelo deputado Arthur Lira, do Partido Progressista (PP). Lira é o líder parlamentar da suprapartidária bancada conhecida como "centrão" ou "blocão", que inclui partidos sem base ideológica, assumidamente interessados numa aproximação ao poder executivo, seja ele exercido por quem for, de forma a garantir cargos e dinheiro.

Como Lira, que foi detido por obstrução da justiça em 2008, condenado por manipulação de folhas de pagamentos da assembleia legislativa do seu estado, Alagoas, em 2011, investigado na Operação Lava Jato, acusado de enriquecimento ilícito e até de violência doméstica, a maior parte dos integrantes do "centrão" tem um cadastro policial de respeito.

Entre os quais, líderes históricos desse bloco, como Valdemar Costa Neto e Roberto Jefferson - o primeiro comandou o Partido Liberal mesmo da cadeia, depois de condenado no esquema de pagamento periódico a deputados em troca da aprovação de projetos conhecido como Mensalão, e o segundo, dono do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), denunciou e foi condenado no escândalo que manchou o primeiro governo de Lula da Silva (PT).

Além da nomeação para o órgão contra as secas, Bolsonaro negoceia com o "centrão" o controle do Banco do Nordeste, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e da Parnaíba, do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação, da Fundação Nacional de Saúde e secretarias do Ministério de Desenvolvimento Regional, todos cargos públicos bem remunerados e com orçamentos milionários.

Em causa, as contas de um eventual impeachment: dado o acúmulo recente de crises, como os bizarros discursos sobre a pandemia de Covid-19, as manifestações pró-ditadura com a presença do presidente e as demissões dos populares ministros Sérgio Moro, da justiça e segurança, e Luiz Henrique Mandetta, da saúde, foram apresentados 36 pedidos de destituição, à esquerda, à direita e até de ex-indefetíveis do governo, como Joice Hasselmann, a autodenominada um dia "Bolsonaro de saias".

E quem decide dar sequência ou não a esses pedidos é Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados que vem sendo arrasado em declarações de Bolsonaro, em manifestações pró-governo e em milícias virtuais lideradas pelos filhos do chefe de estado.

Sentindo-se encurralado, Bolsonaro virou-se para os eleitores - mas não os eleitores comuns, a quem prometeu "uma nova política", e sim àqueles que votam a favor ou contra o impeachment, os deputados. O presidente precisa de 172 votos (um terço mais um) para escapar dele e o "centrão" equivale a 200 parlamentares.

"Derrubar Bolsonaro? Só se for à bala", resumiu Roberto Jefferson, o mais novo acólito do presidente, a meio do "toma lá, dá cá", o nome dado em Brasília a estas "tenebrosas transações", como cantava Chico Buarque.

Para os editorialistas do conservador jornal O Estado de S. Paulo, a aliança é "despudorada e ruinosa".

E quem pediu impeachment também vem denunciando a jogada:"Bolsonaro está comprando o que existe de pior na política brasileira, Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto, em troca de cargos e esse pagamento da 'base de apoio alugada' é feito todo com dinheiro público", disse a deputada Fernanda Malchionna, do esquerdista PSOL, à BBC News Brasil.

"Mas é uma questão de tempo até a situação do Bolsonaro se deteriorar", acrescenta Kim Kataguiri, do direitista DEM, outro dos deputados que pediram a destituição do presidente. "Ele cada vez mais radicaliza o discurso, deixa o ambiente político cada vez pior, e ainda trabalha para agravar a crise económica e a crise na saúde".

Kataguiri é, em paralelo, membro do Movimento Brasil Livre, um dos grupos apartidários mais ativos nas manifestações que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. A então presidente caiu, entre outros motivos, porque perdeu o apoio do "centrão", na altura liderado pelo líder da Câmara dos Deputados, entretanto preso, Eduardo Cunha, deputado do MDB, o partido de Michel Temer.

Temer, por sua vez, salvou-se duas vezes de ser julgado por crimes comuns enquanto presidente porque, com apoio do "centrão", a quem distribuiu cargos milionários, a Câmara dos Deputados o blindou.

Do lado dos apoiantes de Bolsonaro, entretanto, o contrato do governo com o "centrão" é relativizado. "Não falamos disso, é como se não existisse", disse ao jornal Folha de S. Paulo a deputada bolsonarista Alê Silva.

Para Daniel Silveira, bolsonarista cujo momento político mais relevante foi a destruição de uma placa de homenagem à vereadora executada Marielle Franco, "o presidente merece o benefício da dúvida porque ele raramente erra".

Ouvido pelo DN, Michael Mohallem, cientista político da Fundação Getúlio Vargas, não considera que o recurso à "velha política" necessariamente salve Bolsonaro do impeachment.

"O impeachment sendo, para já, difícil não é irrealizável, por um lado, porque não sabemos se a relação com o "centrão" será frutífera e duradoura, e, por outro, porque quem quer o impeachment está a aguardar, primeiro, a evolução dessa relação e, depois, se a crise da pandemia, com os muitos milhares de mortos que infelizmente se aguardam, respinga no presidente".

"A situação política do Brasil é por isso hoje muito volátil; nas próximas semanas ou meses veremos evolução", conclui.

Nos bastidores, fala-se que a negociação entre o "centrão" e o presidente foi, entretanto, além da cobiça por cargos, dinheiro e poder públicos: o primeiro teria exigido ao segundo a cabeça de Moro, detestado por muitos deputados afetados pela Lava Jato. Nesse caso, ela já foi entregue.

O certo é que o "centrão" volta a ter um presidente na mão, depois de Lula, sob o qual se gerou o "Mensalão", de Dilma, que caiu por não o ter satisfeito completamente, e de Temer, que precisou de alimentar a sua voragem para conseguir completar o mandato.

Mesmo depois de militar em duas das mais simbólicas forças que compõem o "centrão", o PP e o PTB, por 21 anos, Bolsonaro conseguiu nas eleições de 2018 convencer a população - e ainda convence cerca de 30% dela - que o combate.

Nos últimos dias, as redes sociais recuperaram uma imagem de Augusto Heleno, ministro mais próximo do presidente, a cantar o samba "se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão", trocando a palavra "ladrão" por "centrão". Menos de dois anos, o "centrão ladrão" é parceiro do governo.

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