"ONG teimam em manter os nossos índios como homens das cavernas"

Presidente brasileiro ataca governos do PT, Cuba, Venezuela, comunicação social internacional, a França, sem a nomear, e as Organizações Não Governamentais que atuam na Amazónia, o essencial do discurso inaugural na cimeira de Nova Iorque. Analistas falam em oportunidade perdida.
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"As ONG teimam em manter os nossos índios como homens das cavernas", disse Jair Bolsonaro, no discurso que abriu a 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas. O presidente brasileiro, numa comunicação agressiva sobre a Amazónia e não só, afirmou que "é falácia" dizer que a floresta tropical brasileira é "património da humanidade" e cientificamente equivocado chamá-la de "pulmão do planeta".

"Temos compromisso com o ambiente, a nossa Amazónia é maior do que toda a Europa ocidental, nesta altura do ano o tempo seco e os ventos levaram a incêndios, os ataques sensacionalistas dos media despertaram o nosso sentimento patriótico, um país comportou-se no G7 como colonialista e de forma desrespeitosa", continuou, numa referência à França de Emmanuel Macron. "Agradeço a Donald Trump [presidente dos EUA] por ter mantido o respeito pela nossa soberania", concluiu.

"O Brasil agora tem um presidente preocupado com aqueles que já lá estavam antes da chegada dos portugueses", disse ainda. "Os que nos atacam não estão preocupados com os indígenas e sim nas riquezas naturais e na biodiversidade", prosseguiu. "Caciques índios, como Raoni, são usados como peças de manobra", afirmou também.

"O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas Ianomâmi e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros".

"Quero reafirmar minha posição de que qualquer iniciativa de ajuda ou apoio à preservação da floresta amazónica, ou de outros biomas, deve ser tratada em pleno respeito à soberania brasileira. Também rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e económicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções", sublinhou.

Bolsonaro atacou ainda os governos do PT - "o meu país ressurge depois de ter estado muito próximo do socialismo, o que o colocou sob ataques ininterruptos a valores familiares e religiosos e exposto à corrupção" - o programa Mais Médicos, estabelecido entre Brasil e Cuba por Dilma Rousseff, e o regime de Nicolás Maduro. "O socialismo está a dar certo na Venezuela: todos estão pobres e desempregados", ironizou.

Fiel ao seu discurso de campanha eleitoral afirmou que "a ideologia se instalou no terreno da cultura, da educação e dos media, dominando meios de comunicação, universidades e escolas". Mais: "A ideologia invadiu os nossos lares para investir contra a celula mater de qualquer sociedade saudável, a família. Tentam ainda destruir a inocência de nossas crianças, pervertendo até mesmo sua identidade mais básica e elementar, a biológica".

O ataque à esquerda teve ainda a facada de Juiz de Fora como mote: "Fui covardemente esfaqueado por um militante de esquerda e só sobrevivi por um milagre de Deus. Mais uma vez agradeço a Deus pela minha vida". Depois, citou a passagem bíblica que mais lhe agrada: "Seguindo João 8,32: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".

O senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente investogado por corrupção, foi dos mais entusistas com o discurso. "O discurso do presidente evou ao conhecimento mundial a pauta vencedora das eleições de 2018. Por isso, os derrotados nas urnas estão criticando o discurso libertador, verdadeiro e que ainda fez convite ao mundo para que venham conhecer o Brasil".

Na oposição, os ataques, foram implacáveis: "O discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral da ONU expõe o Brasil ao mundo como um país refém de um presidente que sofre de cegueira ideológica, mente, insulta países parceiros e ataca um dos maiores líderes indígenas brasileiros, o cacique Raoni. Que vergonha!", disse Alessandro Molon, do PSB.

"O Brasil nunca passou tanta vergonha na ONU! Bolsonaro foi até lá culpar nossos indígenas pela sua gestão ridícula da crise na Amazónia, atacou nações que nos ofereceram ajuda, defendeu a ditadura militar e esbravejou asneiras ideológicas diante do mundo! Vexame!", defendeu Randolfe Rodrigues, do Rede.

Para Jandira Feghali, do PCdoB, "Bolsonaro repudia tanto a questão ideológica que se limitou a fazer um discurso puramente ideológico, raso, repleto de mentiras e fake news em plena ONU. Levou sua ignorância para o palco do mundo. Que vergonha! Uma vergonha histórica".

Nos três principais jornais do Brasil, as reações foram também negativas. 'Bolsonaro só falou aos seus, aos convertidos", resumiu a colunista Vera Magalhães, no jornal O Estado de S. Paulo.

Para Miriam Leitão, colunista de O Globo, o presidente brasileiro "desperdiçou momento na ONU e o perdedor é o agronegócio". "Presidente mira público interno, faz discurso agressivo com sentimento de guerra fria e usa plenário privilegiado para fazer acerto de contas com supostos inimigos".

No Folha de S. Paulo, Igor Gielow escreveu em análise que o discurso de Bolsonar foi "coerente com a sua fase mais radical". "Deixou a pé aqueles que apostavam na oportunidade de ver o brasileiro apresentar-se como um líder mais racional".

Manifestações nas ruas

O discurso de Bolsonaro não impediu que grupos de ambientalistas, de defensores dos direitos humanos, de indígenas, de Organizações Não Governamentais (ONG) e de políticos se manifestassem, tanto nas ruas como nas salas de reunião da ONU, contra Bolsonaro.

Os atos começaram ao longo da semana passada - com o debate "porquê #cancelarBolsonaro", uma reunião sobre a violação de direitos humanos no país, a cargo do Conselho Indigenista Missionário e da Rede Eclesial PanAmazónica, e a Marcha da Juventude - e prosseguiram mais intensos ontem e hoje. Dezenas de pessoas manifestaram-se em frente ao hotel onde a delegação brasileira se instalou em Nova Iorque - e que incluiu a primeira-dama Michelle e o deputado e provável embaixador nos EUA Eduardo Bolsonaro - sob palavras de ordem como "Amazónia Sim, Bolsonaro Não".

Circulou também uma carta assinada por mais de mil pessoas e entidades a exigir que o secretário-geral da ONU António Guterres repreendesse formalmente o presidente brasileiro.

Guterres, entretanto, vetou o discurso do Brasil na cúpula do clima, realizada ontem "porque o país não apresentou um plano que aumente o compromisso climático", disse fonte da ONU. O objetivo da cúpula é que os países aumentem a ambição e compromissos com o clima, pois o acordo firmado em Paris, em 2015, não foi o suficiente para impedir o aumento da temperatura média do planeta.

A lista dos países que discursaram também não incluiu Estados Unidos, Arábia Saudita, Japão, Austrália ou Coreia do Sul. Ao todo, 63 países foram ao púlpito, entre eles, França e Reino Unido.

O ministério dos negócios estrangeiros do Brasil temeu ainda enfrentar dificuldades para organizar os tradicionais encontros bilaterais pelo facto de chefes de estado não desejarem ver a sua imagem associada à de Bolsonaro, hoje no papel, que no passado pertenceu a Hugo Chávez ou a Mahmoud Ahmadinejad, de vilão do evento. Cinco encontros - com Peru, Ucrânia, África do Sul e outros não divulgados - foram cancelados, oficialmente, por causa da saúde do presidente brasileiro, ainda a convalescer de operação ao intestino.

Mas há expectativa das autoridades do país conseguirem manter conversas paralelas para fortalecer acordos económicos, como o acordo de Livre Comércio Mercosul-União Europeia, assinado dia 28 de junho.

O desmatamento e as queimadas ganharam repercussão internacional e colocaram o Brasil no centro do noticiário global depois de São Paulo, cidade a mais de 2500 km da Amazónia, ver o céu escurecer na segunda semana de agosto como consequência do mau tempo e do fumo das queimadas vindas das regiões norte e central do país, além do Paraguai.

A água da chuva daquele dia estava contaminada com fuligem de fogo, segundo reportagem da TV Globo.

Fotos da Amazónia desmatada invadiram as redes sociais no Brasil e no mundo e aumentaram a pressão sobre Jair Bolsonaro. O presidente, no entanto, disse que as ONG que atuam na proteção ambiental podem estar envolvidas em incêndios ilegais como retaliação por receberem menos verbas desde o seu consulado.

"Pode haver, não estou afirmando, uma ação criminosa dessas ONG para chamar a atenção precisamente contra mim, contra o governo do Brasil. Esta é a guerra que enfrentamos. Faremos todo o possível e impossível para conter o fogo criminoso", disse Bolsonaro, sem apresentar provas para sustentar a acusação.

Representantes dessas ONG repudiaram a afirmação, assim como a comunidade internacional, que se tem mobilizado contra o Brasil, nomeadamente através do presidente francês Emmanuel Macron. Na sequência, Bolsonaro e o seu ministro da economia sugeriram que a primeira-dama francesa, Brigitte Macron, era feia, o que aumentou o desconforto diplomático entre os dois países. Pelo meio, o Planalto também trocou acusações com os governos da Noruega e da Alemanha.

No país e no mundo, entretanto, realizaram-se manifestações em, pelo menos, 40 cidades, sob a liderança da produtora e atriz Paula Lavigne que classificou a política de Bolsonaro de "criminosa".

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