Bolsonaro está com soluços
O que tem saído da boca de Bolsonaro nos últimos dias, além de chamar um juiz do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral de "idiota e imbecil" por este defender o voto eletrónico, sistema de votação mais confiável do mundo?
E de atacar os membros da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigam a negligência criminosa do governo no combate à pandemia e um escândalo milionário de corrupção na aquisição de vacinas?
E de apoiar um ministro que ajudou a roubar madeira do país, a dizimar mata na Amazónia e a queimar floresta no Pantanal?
E de glorificar a ditadura militar e a tortura?
E de criticar países, como a China, estratégicos para a economia brasileira?
E de ofender negros, índios, homossexuais, mulheres e todos os demais grupos que sinta vulneráveis?
A resposta é simples: o que tem saído da boca de Bolsonaro nos últimos dias além dessas boçalidades é ar. Ar em excesso. Sim, Bolsonaro está, há já duas semanas, com um ataque de soluços.
"Estou com [hic] soluços há uns dias. Fiz uma [hic] cirurgia para implante dentário [hic] e [hic] não sei se é dos remédios mas [hic] estou 24 horas por dia com [hic] soluços", explicou a uma rádio, no Rio Grande do Sul.
"Tenho dois discursos [hic] para fazer, então [hic] vou falar pouco [hic] aqui", avisara horas antes, ao sair do Palácio do Alvorada.
Necessariamente menos cómico do que a versão original, Marcelo Adnet, um dos mais brilhantes imitadores do presidente, está, com esta história dos soluços, a sentir-se ocioso. Bem que Bolsonaro prometera dificultar a vida da Rede Globo, onde Adnet trabalha - mesmo que todos os brasileiros já tenham percebido que a emissora continuará poderosa depois de 2022 e que ao chefe de estado, após a eleição presidencial, não está destinado nada além dos calabouços da insignificância de onde nunca deveria ter saído.
Adiante: restrinjamo-nos ao lado médico, e não ao humorístico ou ao político, da situação: é preocupante uma crise assim tão longa de soluços?
Jennifer Mee, a mais famosa "soluçadora" da história, conhecida nos Estados Unidos como hiccup girl [menina dos soluços], participou em dezenas de programas de TV em 2007, tinha ela 15, por causa de uma crise permanente e incontrolável - eram 50 irritantes soluços por minuto para dó dos comovidos telespectadores.
Não resultaram nem as popularmente recomendadas ingestão de açúcar, manteiga de amendoim ou respiração para o interior de um saco. Nem sequer os tradicionais sustos de família e amigos.
Apenas medicamentos prescritos a doentes com síndrome de Tourette resolveram, meses depois, o drama da pobre hiccup girl.
Com o terrível problema de saúde resolvido, Jennifer saiu das manchetes.
Até em 2010, com 18 anos, voltar a elas e em força: combinou um encontro com Shannon Griffin, rapaz de 22 anos, numa casa abandonada; lá, dois comparsas dela roubaram os 50 dólares do bolso de Griffin e mataram-no em seguida.
O juiz, embora concordando que não foi ela a autora dos disparos, considerou-a cúmplice por, sem soluçar, atrair a vítima ao local onde foi cometido um crime a sangue frio.
Ela declarou-se culpada, o que lhe atenuou a pena, que ainda cumpre.
O advogado dela, entretanto, vem, sem sucesso, tentando reabrir o caso, defendendo a rebuscada teoria de que há uma relação entre crise de soluços e impulso para cometer crimes. Cá para nós, talvez não seja uma teoria tão rebuscada assim.
Jornalista, correspondente em São Paulo