Bolsonaro encurralado pela CPI da pandemia

Ameaças de prisão, documentos secretos, silêncios ensurdecedores, invasões, insultos, funk, guerra dos sexos, mentiras e vídeo. As duas primeiras semanas de audições foram quentes. A próxima promete ser escaldante
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"Eu vou, diante do flagrante evidente, pedir a prisão de vossa senhoria porque o espetáculo de mentiras que nós vimos hoje aqui é algo que não vai se repetir e não pode servir de precedente", disse na quarta-feira o senador Renan Calheiros (MDB), o relator da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura a responsabilidade do governo de Jair Bolsonaro nas mais de 430 mil mortes por covid-19 no Brasil, a Fábio Wajngarten, ex-diretor de comunicação do presidente.

Foi um dos momentos mais tensos de uma investigação que em duas semanas já produziu uma sequência de episódios dramáticos e promete produzir ainda mais nesta semana, quando forem ouvidos os ex-ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, acusado de ter atrasado a compra de matérias-primas no tratamento à doença, e da Saúde, Eduardo Pazuello, considerado pelos senadores da oposição como o maior responsável, em estrita obediência a Bolsonaro, pela recusa de 70 milhões de vacinas da Pfizer em 2020.

Pazuello, que já adiara em 10 dias o seu depoimento, requereu, através da advocacia-geral do governo, um habeas corpus que lhe permita manter-se em silêncio na CPI.

O vereador do Rio de Janeiro e segundo filho do presidente Carlos Bolsonaro, que segundo o depoente Carlos Murillo, diretor da Pfizer para a América Latina, participou de reuniões com a empresa, também já foi convocado para audição.

Voltando a Wajngarten, o comunicador fora chamado à CPI por, em entrevista à revista Veja ter acusado o Ministério de Saúde de "incompetência" no episódio da (não) aquisição de vacinas da farmacêutica norte-americana. Perante os senadores, desdisse-se sob juramento.

O ex-diretor de comunicação seria desmentido ao longo das quase 10 horas de interrogatório pela própria Veja, que soltou o áudio onde o entrevistado fala em "incompetência". E, depois de dizer que não participara na propaganda governamental "o Brasil não pode parar", que estimulava a ida dos brasileiros para as ruas em plena pandemia, acabou desmentido também por um vídeo que publicara nas redes sociais a dizer, em conversa com o deputado Eduardo Bolsonaro, que, mesmo em quarentena, estava a trabalhar.

Mentiras, vídeo e, para completar, o cliché cinematográfico houve ainda sexo ou, pelo menos, guerra dos sexos, quando o presidente da CPI decidiu dar voz às senadoras, mesmo sendo a comissão constituída oficialmente por 18 parlamentares homens, contra a vontade da bancada próxima de Bolsonaro. "Isso não está no regimento", queixou-se o senador bolsonarista Ciro Nogueira (PP). "Só não entendo o porquê de tanto medo das vozes femininas", respondeu Eliziane Gama (Cidadania). Com a discussão a aumentar de tom, Eliziane chegou a acusar Nogueira de estar "descontrolado". "Não admito grito!", rematou.

Wajngarten, mesmo acusado de mentir na CPI para proteger Bolsonaro, acabou, no entanto, por contribuir para a tese de que o presidente foi, no mínimo, negligente no combate à pandemia: apresentou documento onde se provava que a oferta da Pfizer ficou dois meses sem resposta e afirmou que enquanto ele próprio se reunia com dirigentes do laboratório, o chefe de estado do Brasil preferiu participar em evento com Amado Batista, cantor brega (pimba), brasileiro.

O interrogatório a Wajngarten, classificado como "constrangedor" e "massacre" pela imprensa brasileira, gerou outros tumultos inesperados. O presidente da CPI, Omar Aziz (PSD), disse ao depoente que iria recusar a sugestão de Calheiros de mandá-lo para a cadeia mas sublinhou que "a prisão seria o menor dos seus problemas", quando comparado com a "perda de credibilidade de uma vida inteira com tantas mentiras". Na sequência, durante um intervalo, a sessão foi invadida pela bolsonarista Carla Zambelli (PSD), que por ser deputada não era suposto estar no Senado, a atacar Calheiros e a defender Wajngarten.

Mais tarde, foi a vez do senador Flávio Bolsonaro intervir na CPI chamando Calheiros de "vagabundo" e dizendo "vá se f....". O alvo das acusações devolveu a acusação de "vagabundo" e acusou Flávio de "roubar o dinheiro dos seus funcionários", numa alusão à "rachadinha", escândalo de corrupção em torno do primogénito do presidente.

Antes do diretor de comunicação, falaram o primeiro, Luiz Henrique Mandetta, e o segundo, Nelson Teich, ministros da saúde de Bolsonaro. O segundo admitiu ter pedido para sair menos de um mês depois de ter assumido por causa das pressões do presidente para prescrever cloroquina, remédio considerado ineficaz pela OMS. E o primeiro acusou o Planalto de "desprezar a doença", ao ponto de numa reunião ter sido colocado na mesa um projeto de lei a sugerir a alteração da bula oficial da cloroquina para "indicado contra covid-19".

O atual ministro, Marcelo Queiroga, escusou-se a dizer se era a favor ou contra o uso da cloroquina, irritando Calheiros, que o recordou estar sob juramento.

As enérgicas intervenções de Calheiros, um controverso parlamentar investigado por corrupção, que já presidiu ao Senado em cinco ocasiões, foi ministro de Fernando Henrique Cardoso e aliado de Lula da Silva e Dilma Rousseff mesmo pertencendo ao partido de Michel Temer, já mereceram até um funk - "Capricha Renan" - em sua homenagem.

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Humberto Costa (PT), membro da CPI

A recomendação da cloroquina é o principal ponto da CPI?
Temos denunciado que o governo, além de desprezar as medidas adequadas à não propagação do vírus, ainda defende uma cura milagrosa, a tal cloroquina, remédio que não só não tem qualquer indicação para covid-19, como ainda tem efeitos colaterais graves e dá a falsa sensação, a quem a toma, de que pode sair por aí em segurança, sem máscara e se tomar outras precauções. E infelizmente esse discurso do presidente é acolhido por muita gente ainda, gente que adota e espalha essa tese estapafúrdia.

Defende que Bolsonaro montou um Ministério da Saúde paralelo ao oficial...
Muito provavelmente sim. E vamos tentar ouvir os supostos membros, Osmar Terra [médico e político bolsonarista], e Carlos Bolsonaro. O objetivo é demonstrar a tese de que o governo Bolsonaro defendeu uma política de disseminação máxima do vírus com o intuito de chegar à chamada imunidade coletiva, cujos resultados estão à vista, com o número de mortes de brasileiros contabilizados até agora, e que essa política foi desenhada no seio de uma espécie de ministério paralelo conduzido por essas pessoas.

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