"Bolsonaro é um sociopata", diz Boulos, o 'próximo Lula'
Guilherme Boulos, candidato a deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o "Bloco de Esquerda brasileiro", é considerado pela imprensa e por politólogos o sucessor natural de Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), como líder da esquerda do Brasil.
Com estatuto de "estrela em ascensão" - na semana passada 300 personalidades das artes e da academia, como Caetano Veloso, Gal Costa, Marieta Severo, Gregório Duvivier ou José de Abreu, assinaram manifesto a apoiá-lo - e já com razoável experiência política - foi o 10º candidato presidencial mais votado em 2018 e o segundo na eleição para prefeito de São Paulo, em 2020, com 2,2 milhões de votos -, o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) vai pavimentando o seu caminho de braço dado com aquele a quem pode suceder.
Aceitou abdicar da corrida, em outubro, ao governo do estado de São Paulo a favor da candidatura de Fernando Haddad (PT), e em contrapartida, recebeu o compromisso do apoio de Lula na corrida à prefeitura da maior cidade do Brasil nas municipais de 2024.
Ao DN, Boulos chama o bolsonarismo de "maior retrocesso da história" e puxa dos galões de mestre em psiquiatria para definir Jair Bolsonaro como "um sociopata".
Como define os quatro anos de bolsonarismo no Brasil?
Os quatro anos de bolsonarismo foram o maior retrocesso da história recente do Brasil em todos os aspectos. Do ponto de vista ambiental, com a devastação da Amazónia, na gestão da pandemia, um verdadeiro genocídio pela negação da vacina e das medidas de proteção, na economia, com o regresso do Brasil ao Mapa da Fome da ONU, com 19 milhões de famintos, e um desemprego altíssimo, e na política, com o avanço do autoritarismo e da apologia a ditadores e torturadores. Este ano é o ano do Brasil virar a página.
E que condições, na sua opinião, tornaram possível alguém com o perfil dele ser eleito em 2018?
Além da ascensão internacional da extrema-direita com que ele se conectou, com técnicas de segmentação de rede de psicometria, de disparo em massa e de fake news importadas do [ex-conselheiro de Donald Trump] Steve Bannon e da [empresa envolvida em escândalo de coleta de dados] Cambridge Analytica, beneficiou-se de um sentimento antipolítica muito forte em virtude da Operação Lava Jato que levaria à prisão injusta do Lula. Esse caldo, com Bolsonaro a vender-se como alguém de fora da política, mesmo isso sendo falso, foi decisivo para a eleição de um cidadão como esse. Vamos trabalhar para que isso não se repita em 2022, para que isso jamais se repita no Brasil.
Por que retirou a pretensão de concorrer a governador de São Paulo e optou por tentar um lugar na Câmara dos Deputados?
Nós temos que eleger o Lula este ano. Esse é o objetivo principal do povo brasileiro. Mas não basta derrotar o Bolsonaro e eleger o Lula e manter o Congresso Nacional dominado pela direita e pelos interesses clientelistas. Por isso, coloquei-me o desafio de concorrer a deputado para ajudar a fortalecer uma grande bancada de esquerda, revogar a reforma laboral e o teto de gastos [emenda constitucional da gestão de Michel Temer que limitou o crescimento de despesas no orçamento, incluindo nas áreas de Educação e Saúde], uma excrescência feita no Brasil após o golpe contra a Dilma, e também permitir avanços de governabilidade.
O compromisso de concorrer ao parlamento e não ao governo estadual pressupõe apoio do PT a eventual candidatura sua à prefeitura de São Paulo em 2024?
Nós tivemos uma votação expressiva em 2002 para a prefeitura de São Paulo, uma cidade com 12 milhões de habitantes, nas condições mais adversas, pouca estrutura, sem máquina partidária, pouquíssimo tempo de TV, e mesmo assim chegamos à segunda volta com mais de dois milhões de votos. Isso coloca-nos numa perspectiva de governar São Paulo em 2024, com um projeto humano e transformador, mas antes os objetivos são eleger o Lula presidente e ganhar o estado de São Paulo e outros estados para a esquerda
E a longo prazo vê-se como eventual líder das esquerdas, um caminho que muitos observadores lhe prognosticam, sucedendo a Lula?
Tudo faz parte de um ciclo de renovação da esquerda brasileira para os desafios do século XXI.
O PSOL nasce de uma cisão no PT. Agora o bolsonarismo leva-os a correr unidos de novo. Essa "geringonça" pode durar?
Eu acho a experiência da geringonça em Portugal muito inspiradora principalmente porque foi uma aliança programática de setores diversos das forças progressistas, com uma esquerda mais forte, composta pelo Bloco de Esquerda e o PCP, até ao centro-esquerda representado pelo PS. Na construção da aliança em torno do Lula, o PSOL também colocou temas programáticos como condição. A duração desse acordo aqui no Brasil vai depender de debate interno no próprio PSOL, da composição do governo Lula, mas antes de discutir o futuro, porque a discussão do futuro está bloqueada com Bolsonaro, é preciso virar a página desse pesadelo.
Como reage a quem acusa a esquerda brasileira de ser muito permissiva com regimes como o cubano ou o venezuelano, por exemplo?
O Brasil tem que construir o seu próprio modelo e não importar modelos de Cuba, da Venezuela ou dos Estados Unidos. Nós temos uma posição clara na crítica a caminhos autoritários, não defendemos sistemas eleitorais de partido único, não defendemos ataques a opositores. Mas não aceitamos também um debate com dois pesos e duas medidas, porque no Brasil os que atacam Cuba e Venezuela são os mesmos que colocaram Bolsonaro no governo, defenderam torturadores e ditadores e silenciam quando se fala nas condições de Guantánamo ou na forma como os Estados Unidos tratam os emigrantes, colocando-os em jaulas na fronteira com o México. Ou seja, essa discussão tem de ser feita de forma séria e não caricatural como costuma fazer a direita hegemónica no Brasil.
Como alguém, filho de médicos, decide dedicar-se ao MTST?
No Brasil, há desigualdade a cada esquina, com gente morando na rua, com gente virando lixo para encontrar comida. A questão é que fomos sendo condicionados a ver essa desigualdade como algo natural, como parte da paisagem das cidades, sem questioná-la. Eu, como filho de médicos e professores universitários humanistas e solidários, fui estimulado a questioná-la, pude indignar-me com a dor dos outros e isso levou-me a ajudar em campanhas de coleta de alimentos para projetos sociais de São Paulo, em movimentos de alfabetização de jovens e adultos em favelas e, finalmente, ao MTST, maior movimento urbano de luta pelo teto, uma causa tão fundamental. Fui morar numa ocupação, onde tive a maior aprendizagem da minha vida, porque vi muita verdade, muito sentido, muita importância histórica e em 22 anos não saí mais dessa luta. Apesar de ter formação universitária e de ser professor universitário, a minha maior escola é o MTST.
É mestre em psiquiatria: essa formação ajuda no combate político?
[risos] Não tenha dúvidas, ajuda no trato com as pessoas e na leitura de um país hoje tão doente e maltratado. Tenho mestrado em psiquiatria e formação em psicanálise, são instrumentos muito úteis para lidar com uma política que está adoentada, para lidar com patologias sociais ainda mais para mais com um sociopata na presidência da República.
Tem contacto com a política de Portugal?
Eu gosto muito de Portugal, que visitei duas vezes, sinto identidade com o Bloco, com a amiga querida Joana Mortágua, com o professor e mestre Boaventura Sousa Santos, que admiro muito, grande intelectual do nosso tempo, cujo livro prefaciei na edição brasileira. E além dessas conexões tenho agora ligação especial ao treinador Vítor Pereira. Como torcedor do Corinthians, deposito muitas esperanças nele para devolver o protagonismo do clube no Brasil a na América do Sul.
Guilherme Castro Boulos nasceu em 1982 em São Paulo.
Filho de médicos, é formado em filosofia, com mestrado em psiquiatria, e professor universitário.
Tem duas filhas, Sofia e Laura, fruto da relação de 13 anos com a ativista Natália Szermeta.
É desde 2002 o principal rosto do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, movimento social que advoga o direito à moradia para todos, ao serviço do qual viveu em ocupações e foi preso e processado.
Na política, concorreu pelo PSOL à presidência da República em 2018, quando foi o décimo mais votado. Dois anos depois surpreendeu ao chegar à segunda volta da eleição para prefeito de São Paulo como representante da esquerda.
Este ano, ao se candidatar a deputado federal, abdicou de concorrer a governador do estado de São Paulo para apoiar Fernando Haddad, do PT. Em contrapartida, nas eleições municipais de 2024 terá o apoio daquele partido na corrida à prefeitura da sua cidade.