Bolsonaro entrega ministério e até Moro à cobiça dos deputados

Para aprovar o seu principal desígnio no primeiro ano de governo, a reforma da previdência, presidente permite as práticas daquilo a que chamava de "velha política" durante a campanha eleitoral. E esvazia o ministério do antigo chefe da Lava-Jato.
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Para aprovar no Congresso Nacional a reforma da previdência, o seu principal objetivo de governo no primeiro ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro está disposto a oferecer um ministério inteiro para satisfazer a cobiça dos deputados e até esvaziar a pasta da justiça, liderada por Sergio Moro.

Nos últimos dias, o "blocão", como é conhecido o vasto grupo de partidos no Brasil que age assumidamente por interesse e não por ideologia, juntou-se à oposição numa comissão do Congresso que analisava mudanças ministeriais e vetou a passagem do órgão que controla as atividades financeiras, o COAF, da área económica para a área judicial, a alçada de Sérgio Moro. Para o ministro que se tornou célebre conduzindo a Operação Lava-Jato, tutelar aquele órgão era considerado fundamental - ele, inclusivamente, condicionou ainda em novembro a aceitação do convite de Bolsonaro para integrar o governo a essa premissa.

Foi o COAF que ajudou a descobrir o Escândalo do Mensalão e que encontrou irregularidades em movimentações milionárias de Fabrício Queiroz, assessor de Flávio Bolsonaro, ligado às milícias de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, que estão por trás dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, no ano passado, de acordo com a polícia federal. Segundo o colunista da TV Globo Gerson Camarotti "aquele grupo a que se pode chamar de 'bancada dos investigados' no Congresso não quer um órgão desse tipo nas mãos de Moro".

Ontem, entretanto, no que foi entendido num esforço para apaziguar Moro, o presidente disse que lhe dará uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF). "Eu fiz um compromisso com ele, porque ele abriu mão de 22 anos de magistratura. A primeira vaga que abrir no STF estará a sua disposição", disse, em entrevista à Rádio Bandeirantes. Ao jornal Expresso, o ex-juiz havia dito que chegar ao STF seria como "ganhar na lotaria".

O que chamou a atenção dos observadores, no entanto, foi a falta de empenho dos deputados alinhados ao governo em derrotar a aliança entre oposição e "blocão" nessa comissão e manter Moro satisfeito. Bezerra Coelho (MDB), que lidera toda a bancada governista na Câmara dos Deputados, defendeu em discurso de meros 22 segundos a transferência do COAF para a justiça. E os habitualmente aguerridos senador Major Olímpio e deputada Joice Hasselmann, ambos do PSL, partido do presidente, nem pediram a palavra, assistindo, conformados, à derrota do governo e do ministro.

"O governo não faz muito esforço para segurar o COAF nas mãos de Moro. A recente derrota do "superministro" no Congresso mostra que, além da resistência de alguns partidos à expansão dos seus poderes, nem sempre Bolsonaro estará na retaguarda para defendê-lo", escreveu Bruno Boghossian, colunista do jornal Folha de S. Paulo. "Bolsonaro entregou Moro de bandeja ao Congresso para evitar derrotas maiores. O presidente tem um capital político limitado (...) ele decidiu preservar seus poucos trocados para outras brigas", continua o articulista.

Por "essas brigas" entenda-se a reforma da previdência, considerada essencial para o futuro do Brasil - e para o futuro do governo - mas cuja aprovação depende do voto de dois terços dos deputados. Por sem impopular - aumentará idade da reforma e retirará benefícios - os parlamentares não estão dispostos a aprová-la de mão beijada. Por isso, exigem contrapartidas do governo, como aparentemente o esvaziamento do poder de Moro. E não só.

Bolsonaro, que em campanha prometeu reduzir o número de ministérios, vai criar pelo menos mais um para alimentar o apetite desses deputados. Para executar essa redução prometida, o presidente, entre outras reestruturações, decidira fundir as pastas das Cidades e da Integração Nacional numa só, sob o nome de Desenvolvimento Regional. Agora, volta à fase inicial. E mais: concordou que os ministros dessas duas pastas ressuscitadas sejam escolhidos pelos presidentes das duas casas do Congresso Nacional, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados.

Parlamentares de partidos do tal "blocão" exigiram esses dois novos ministérios, em vez de apenas um, de maneira a poder colocar lá aliados. Em troca, aprovariam, com menos reservas, a reforma da previdência.

Ao permitir essa negociação, Bolsonaro faz afinal o mesmo de que acusou Temer e os governos do PT, principalmente os dois de Lula da Silva, que condicionaram a aprovação de projetos que consideravam importantes à oferta de cargos. No fundo, a base do referido Mensalão, que estourou em 2005 e levou à prisão altos mandatários do PT, como por exemplo José Dirceu, em 2012 - por posições na máquina pública e pela gestão de chorudos orçamentos estatais, parte dos parlamentares votava ao lado do executivo e permitia a "governabilidade".

No caso da gestão Temer, o ex-presidente liberou aos deputados emendas constitucionais - leia-se dinheiro - para eles votarem contra a aceitação das duas denúncias de corrupção de que foi alvo e que lhe poderiam ter custado o mandato.

Essas práticas são conhecidas na gíria de Brasília pelo eufemismo "articulação política". Ou "velha política", expressão muito usada em campanha, inclusivamente por Bolsonaro, para classificar o modo de governar dos partidos tradicionais - todos derrotados em outubro de 2018.

Bolsonaro disse no final de março que não queria "ir jogar dominó com Lula e Temer na cadeia", atribuindo a prisão dos dois antigos presidentes às negociações pouco republicanas - a tal articulação política - durante os seus respetivos governos. "O que é articulação? O que está faltando eu fazer? O que foi feito no passado? Eu não seguirei o mesmo destino de ex-presidentes, pode ter a certeza disso". Lula foi condenado e preso. Temer está novamente detido desde quinta-feira.

A propósito dos desenvolvimentos recentes - novo ministério e COAF fora das mãos de Moro - o presidente falou através do general Rêgo Barros, porta-voz do Palácio do Planalto. "É uma decisão soberana daquela Casa [Congresso Nacional] e o presidente, democrático que é, aceita in totum [na totalidade]".

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