Bolsonarismo, segundo Nelson Rodrigues
Mesmo num país com tão maravilhosos frasistas, Nelson Rodrigues destaca-se. Numa das suas mais certeiras tiradas, o dramaturgo (e muito mais) falecido fez no dia 21 deste mês 40 anos afirmou que "subdesenvolvimento não se improvisa; é obra de séculos".
Substituamos "subdesenvolvimento" por um dos mais seus recentes sinónimos aproximados - bolsonarismo. Ora, o bolsonarismo também não se improvisou; foi obra, se não de séculos, pelo menos de uma meia dúzia de anos.
Para o seu sucesso contribuiu uma tempestade de fatores simultâneos na louca segunda década do século XXI brasileiro.
Desde logo, o fracasso económico do governo de Dilma Rousseff e a espetaculosa Operação Lava-Jato, ambos com início por volta de 2014, que instalaram no subconsciente do eleitor a certeza de que o primeiro era o motivo da segunda, ou seja, que todos os problemas financeiros do país se resumiam à sentença "o PT roubou".
Que o PT se "lambuzou no poder", parece até concordar Jaques Wagner, um dos seus principais dirigentes e autor da expressão, mas a Lava-Jato não escancarou os podres do partido de Lula da Silva e sim a corrupção, sistémica, e a confusão entre público e privado, eterna, que presidem à política brasileira.
A Lava-Jato, sublinhe-se, alvejou membros de 33 partidos. E o mais atingido não foi o PT de Lula mas sim o PP, onde militava Bolsonaro.
Por outro lado, mesmo com os esforços do juiz Sérgio Moro de blindar Fernando Henrique Cardoso, "para não melindrar alguém cujo apoio é importante", conforme o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro defendeu de forma claramente audível na Vaza-Jato, o conjunto de escutas que escancarou a parcialidade da Lava-Jato, até o PSDB (o partido de FHC) foi envolvido nas trafulhices.
Os outros cardeais do partido - José Serra, Geraldo Alckmin e, sobretudo, Aécio Neves, que uns anos antes era considerado pela sempre visionária elite brasileira o salvador da pátria - foram apanhados pelas redes da Lava-Jato.
O que nos leva ao seguinte balanço: a Lava Jato desmoralizou o PSDB, que governara o Brasil por oito anos, demonizou o PT, que liderou o país nos 13 seguintes, e pelo meio ainda devastou a selva de outros partidos.
Excluídas as partes, sobrou quem no subconsciente do eleitor? O primeiro doido populista que aparecesse.
Aquele que melhor entendesse o espírito do tempo - a onda conservadora global personificada em Trump e a onda moralista nacional fruto do avanço rápido das religiões neopentecostais - e dispusesse de melhores meios de propaganda - uma fábrica bem oleada de fake news difundida pelo WhatsApp e pelas redes sociais.
O resultado foi a eleição do subdesenvolvimento, perdão, do bolsonarismo, nas eleições em 2018.
Chegamos nesta fase do texto ao crítico 2020.
Quis o destino que o principal opositor ao bolsonarismo se tornasse o tal PSDB, já não dos chamuscados Serra e Alckmin ou do carbonizado Aécio, mas de João Doria, governador do estado de São Paulo, e de Bruno Covas, jovem prefeito da capital do estado.
Dada a gloriosa incompetência presidencial no combate à pandemia, à dupla bastou exigir confinamento aos cidadãos e contratar uma vacina para se tornar um oásis de lucidez.
Até que numa semana deitou tudo a perder. Doria, enquanto pedia estoicismo aos impacientes paulistas no combate ao vírus, causou indignação ao voar para a sempre brega Miami nas festas.
E o jovem Covas, para não ficar atrás, em tempos de economia de guerra ofereceu-se um aumento salarial de 46% pelo Natal - "o jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência", ensinava também Nelson. O da ganância também.
O presidente que, por força de um auxílio emergencial durante a pandemia, cresceu em popularidade entre os mais pobres - "o dinheiro", dizia o dramaturgo, "compra tudo, até amor verdadeiro" - não se derrota em 2022 com políticos de improviso tipo Doria e Covas.
Só se derrota com paciência. E inteligência. A não ser que se confirme outra frase de Nelson: "Invejo a burrice, porque é eterna." Substitua-se "burrice" por um dos seus mais recentes sinónimos aproximados, "bolsonarismo", e tema-se o pior.
Correspondente em São Paulo