"Bolsolulistas". Lula está a atrair aliados e eleitores de Bolsonaro
Ninguém esperava que o lançamento, quase incógnito, de um sistema para a transposição do Rio São Francisco entre os estados do Pernambuco e do Ceará ganhasse as manchetes da política partidária do Brasil. Mas ganhou: na fotografia do evento, entre dois ministros de Lula da Silva, um deputado meio desconhecido aparece a fazer o L, com o polegar e o indicador, gesto tradicional dos apoiantes do presidente. Sucede que esse deputado, Yury do Paredão, era do Partido Liberal (PL), de Jair Bolsonaro, e acabou expulso na passada sexta-feira, 21.
O caso de Paredão é apenas sintoma de um movimento mais amplo de adesão de bolsonaristas, sejam agentes políticos, religiosos e económicos ou meros eleitores anónimos, a Lula - os, portanto, "bolsolulistas".
Na política, o mais comum são os casamentos por conveniência - ao governo interessa atrair parlamentares ex-bolsonaristas para ampliar o apoio no legislativo e a alguns desses ex-bolsonaristas convém ficar, estrategicamente, perto do poder - mas, noutras áreas, a perceção dos analistas é que o desempenho de Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), na economia, com inflação em queda e benefícios sociais em alta, contribui.
E os casos de polícia envolvendo Bolsonaro e a decisão do tribunal eleitoral de o considerar inelegível também concorrem, segundo os observadores, para a mudança de opinião entre os (menos radicais) eleitores do ex-presidente.
Além de Paredão, o pastor evangélico Jackson Villar, candidato a deputado pelo Republicanos, o partido ligado à IURD onde milita Carlos Bolsonaro, segundo filho de Jair, publicou vídeo a comparar o preço de produtos de supermercado entre os governos anterior e atual. "Como pude ser tão cego", queixa-se Villar no vídeo, ao verificar que o valor caiu para metade, antes de insultar Paulo Guedes, o ministro da Economia de Bolsonaro. Villar organiza o "Acelera Para Jesus", famoso passeio de moto político-religioso a que Bolsonaro comparecia como estrela.
Ainda no segmento religioso, a nova liderança da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, popularmente chamada de Bancada da Bíblia, busca aproximação a Lula, depois de anos de relação íntima, incluindo orações no Planalto, com Bolsonaro. "Cristo diz venham a mim todos, não apenas alguns", justifica o pastor Roberto Monteiro, do PL.
No mercado, Alberto Saraiva, empresário luso-brasileiro dono da cadeia de fast food Habib"s e fervoroso apoiante de Bolsonaro até às eleições, disse que não voltaria a apoiar o ex-presidente "por uns 500 motivos", que Lula "tem sorte e é competente" e que Fernando Haddad, o ministro das Finanças, "é nota 10 [20, na escala académica portuguesa] e tem o mercado todo do lado dele". Segundo sondagem da Quaest, Haddad, do PT, é aprovado por 65% do mercado (no início do governo, só 26% o apoiavam).
O movimento de aproximação de bolsonaristas a Lula tem, entretanto, dois sentidos. Com o intuito de alargar a base de apoio no Congresso Nacional, o presidente também vem abrindo as portas do governo a adversários como Celso Sabino, novo ministro do Turismo, militante do União Brasil, fusão de partidos herdeiros do PFL, o sustentáculo político da ditadura militar, e ex-aliado de Bolsonaro.
Nesse contexto de troca de apoio no legislativo por cargos no executivo, deputados de partidos próximos a Bolsonaro nos últimos quatro anos, como o Republicanos e o Progressistas, vão ter espaço numa futura remodelação ministerial, segundo Lula. Eles cobiçam as pastas da Saúde, do Desenvolvimento Social, do Desporto, da Indústria, Comércio e Serviços, da Ciência e Tecnologia, além da chefia da estatal Caixa Económica Federal. O presidente já vetou parte das pretensões. Mas as negociações prosseguem.
Em paralelo, a aprovação no início deste mês da ansiada reforma tributária, sob intensa colaboração de Haddad e de Aguinaldo Ribeiro, deputado do Progressistas, teve papel importante na aproximação. Tarcísio de Freitas, governador do estado de São Paulo, pelo Republicanos, e dado como principal candidato à sucessão do inelegível Bolsonaro, tornou-se alvo do bolsonarismo radical por apoiar a reforma que simplifica a complicada teia fiscal do país; além dele, 20 dos 95 deputados do partido do ex-presidente rebelaram-se e votaram contra a ordem partidária de chumbar a proposta (um deles foi Yury do Paredão).
Já em maio, Heitor Freire fora nomeado por Lula para a Sudene, órgão de gestão de fundos na região nordeste. O mesmo Freire, do União Brasil, protocolara um requerimento em 2019, início da gestão de Bolsonaro, a sugerir a criação da "Secretaria Especial de Desesquerdização da Administração Pública". Hoje diz-se arrependido: "Eu reconheço que fui dessa ala radical e, se pudesse voltar atrás, voltaria sim, mas a gente não pode, só pode ficar a lição, a aprendizagem".
Se setores da política, do mercado e das igrejas trocam Bolsonaro por Lula, no eleitorado anónimo há tendência semelhante. Segundo sondagem do instituto Ipec, 41% dos eleitores de Bolsonaro em outubro de 2022 avaliam em junho de 2023 o governo Lula como "ótimo", "bom" ou "regular".
Ouvidas duas mil pessoas entre 1 e 5 de junho em 127 municípios, a pesquisa revela que 19% dos eleitores de Bolsonaro aprovam a maneira de Lula governar e 16% afirmam confiar no atual presidente.
A sondagem também apurou a opinião das pessoas que votaram em Lula em 2022: 68% consideram o desempenho do presidente ótimo ou bom e 27% classificam-no como regular. Já 3% avaliam a gestão como má ou péssima.
No detalhe, são sobretudo as mulheres, os eleitores entre os 45 e os 59, as famílias de classe média, os católicos, os estudantes sem frequência universitária mas ensino médio cumprido e os habitantes de cidades do interior aqueles que, mesmo tendo escolhido Bolsonaro em outubro, apreciam o governo Lula.
A presidente do Ipec, Márcia Cavallari, disse à BBC Brasil que a pesquisa prova que "a decisão do voto não é puramente ideológica". "À medida que o governo avança, mesmo quem não votou no Lula e votou no Bolsonaro vai fazendo uma avaliação do governo e pode ir mudando de posição".
"Isso acontece por conta de uma perceção de que diminuiu a inflação e o custo de vida, de que os indicadores económicos estão melhores, de que Lula estaria cumprindo o que falou na campanha e de que ele está tomando ações de combate à fome e à pobreza".
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