Boas da bola

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Li há dias que há feministas que defendem não se poder dizer campeonato do mundo de futebol porque esse campeonato do mundo de futebol é o campeonato do mundo de futebol masculino e também há o feminino e portanto há que ser rigoroso, não tomando a parte pelo todo, e chamar masculino ao que é masculino e feminino ao que é feminino. Não estão boas da bola. Li também que a FIFA sugeriu que os realizadores mostrassem menos planos de mulheres giras nas transmissões (a imprensa diz hot, mas hot é tão difícil de traduzir). Ao contrário da querela sobre a denominação do campeonato, esta, a das boas da bola, é uma sugestão em que vale a pena pensar. O problema nestas coisas de género é ousarmos alguma ponderação para distinguir a parvoíce do necessário, sem medo da crítica que vem sempre de cada um dos extremos.

A desigualdade de género é um problema que esta geração herdou das anteriores, mas que vai resolvendo, melhorando, minorando para passar um testemunho melhor. O progresso é lento, mas é visível. Naturalmente, a desigualdade manifesta-se também no desporto e no futebol, agravada aqui pelo facto de serem as competições masculinas de clubes e internacionais as que têm sucesso e a maioria dos espectadores, remotos e presenciais, serem homens, e de as mulheres praticarem menos desporto do que os homens (OCDE diz). Tudo isto reforça as desigualdades fora do campo da bola, desde logo nas estruturas de governo institucionais: por exemplo, a Federação Portuguesa de Futebol tem três mulheres em 120 membros de órgãos sociais; a Liga uma mulher em 21. E se passarmos para os três grandes, nem três são: o Benfica tem zero mulheres em vinte cargos; o Porto, zero em quinze; e o Sporting, duas mulheres em vinte e quatro. As entidades com utilidade pública se não estão talvez devessem estar sujeitas a uma obrigação de representação de género mais proporcional do que um para quarenta, mas isso fica para outro artigo. Aliás, que me recorde, em Portugal, em nenhum governo, a secretaria de Estado do desporto foi cargo ocupado por mulher.

A recomendação da FIFA de deixar de mostrar miúdas giras nos estádios (e se as há...) foi sujeita a gozo generalizado. De que se estava a ir longe demais, que era a vitória do fundamentalismo (islâmico até), se se podia continuar a mostrar as pernas do Ronaldo com os calções para cima, foi um fartote. A questão deve ser outra, a de saber qual a razão para fazer insistentemente planos de adeptas larocas e acaloradas? O culpado de tudo isto é Andy Sidaris, realizador de televisão que nos anos 70 enquanto trabalhava para a ABC popularizou aquilo a que chamou o honey shot, na altura focado nas cheerleaders do futebol americano. Sidaris, que se definia como um dirty old man, e acabou como realizador de filmes de série-b com atrizes porno reformadas, iniciou uma tendência que não mais parou (ganhou sete Emmys).

A questão merece ser debatida pela óbvia ligação ao prolongamento de estereótipos e objetificação da mulher. Não estou a dizer que a resposta seja fácil, mas a pergunta é fundamental, porque difícil. É desde logo difícil porque premiar a beleza é sempre o contrário de premiar o esforço ou o resultado (a não ser na parcela menor de esforço relevante para manter a beleza, cuidar da aparência e da condição física, sem ironia). Depois porque falar de uma característica inata - e portanto não alcançada ou alcançável - é falar de bom e não de bem. E é passar por cima da sua implicação fundamental na vida das pessoas, em concreto das mulheres, ao realçar uma diferença muito próxima de desigualdade: a beleza física e a sua distribuição assimétrica, as razões e efeitos da atração física (por que razão o cérebro gosta mais de um ou de outro tipo de cara, de uma ou de outra proporção entre a cintura e as ancas - um dos maiores determinantes de atractividade do corpo feminino?), a implicação darwinista subjacente à escolha de traços que indiciam uma boa carga genética). Mas no fundo qual a razão de mostrar com especial insistência? Porque sim não é resposta. Os espetadores apenas se desaborrecem com caras larocas? Não há mais caras larocas noutro lado? A gireza demonstra afficcion?

Talvez a FIFA pudesse começar por implementar as regras que o Comité de Governance presidido por Miguel Maduro tentou que implementasse sobre a representação de género nas confederações e que tem sido sistematicamente violada - mas fez bem em falar disto. Até porque a vida das mulheres no futebol não é fácil, sujeitas a frequente abuso verbal - e basta andar num estádio português para saber o que se canta quando uma fêmea pisa a relva. Eva Carneiro, antiga médica do Chelsea era comunmente insultada com cânticos misóginos - Mourinho chamou um dia a Eva filha da puta em português e as câmaras mostraram isso (discordou da sua entrada em campo para assistir um jogador e afastou-a depois da equipa) e foi sujeito a um inquérito no qual interveio um perito em língua portuguesa para dar parecer sobre se o referido epíteto tem ou não uma conotação misógina (decidiram que não, o que está correto).

O problema desta recomendação da FIFA, ou dito de outro modo, a dificuldade da resposta, está na liberdade que deve presidir a todas as formas de transmissão de conteúdos, de saber onde pára a atuação (nos filmes? Nos concertos? De quem é o critério?). Admitir a relevância da questão, refletir nela com seriedade e usar o bom senso no momento de atuar. Mas pensarei melhor em tudo isto amanhã a ver as croatas. A Croácia, digo.

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