Boa Morte: "Troquei de passaporte com o Ian Wright e ninguém deu por nada"
Luís Boa Morte foi o primeiro jogador português a representar o Arsenal (Amaury Bischoff e Rui Fonte também jogaram no clube londrino, mas fizeram poucos jogos) e o primeiro português a conquistar uma dobradinha em Inglaterra (campeonato e taça na época 1997-98). Foram duas épocas no clube londrino (ainda fez três jogos na terceira temporada, antes de se transferir para o Southampton), ao lado de grandes craques do futebol mundial e orientado por Arsène Wenger, um treinador que admira e considera um segundo pai. Tempos que o avançado não esquece, a ponto de em vésperas do jogo da Liga Europa entre o Arsenal e o Sporting, o clube que o formou, não revelar por qual vai torcer.
Atualmente no Algarve, onde treina os sub-23 do Portimonense, Boa Morte, que chegou a representar a seleção nacional em 28 ocasiões, reviveu nesta entrevista ao DN os tempos em que representou o clube londrino, tendo como contexto o jogo desta quinta-feira entre o Sporting e o clube inglês, da terceira jornada da fase de grupos da Liga Europa. Afinal, são os dois emblemas que mais o marcaram, apesar de não esconder alguma mágoa por nunca ter jogado na equipa principal do clube que o formou. Para Boa Morte não há favoritos para a partida desta quinta-feira. E diz que não precisa de deixar qualquer conselho a José Peseiro sobre o poderio da equipa londrina. Esta quinta-feira, entretanto, será alvo de uma homenagem por parte do Sporting no intervalo do jogo.
Como é que um jovem de 19 anos, de um momento para o outro, é contratado pelo Arsenal, que na altura (1997-98) tinha uma equipa de luxo?
Na altura, as coisas estavam a correr-me no Lourinhanense, clube onde estava cedido pelo Sporting, apesar de jogar nos escalões secundários. E também na seleção. Estive no Torneio de Toulon em 1997, no qual Portugal chegou à final, joguei bem e acho que impressionei algumas pessoas, porque apareceram clubes interessados.
Mas a verdade é que foi contratado pelo Arsenal sem nunca ter jogado pela equipa principal do Sporting...
Sim, com muita mágoa minha nunca cheguei a jogar na equipa principal do Sporting. Só em jogos treino, que não contam. Jogos oficiais, naqueles a doer nunca cheguei a fazer.
Como recebeu a notícia do interesse do Arsenal?
Primeiro fui informado de que tinha um clube do top 5 de Inglaterra que me queria contratar. Não soube logo que era o Arsenal. Eu e o meu empresário, o Jorge Gama, fomos conversar com os responsáveis do Sporting, porque a verdade é que naquela altura eu não tinha interesse em sair do clube. Queria renovar, ver o meu contrato melhorado e ficar. Fomos falar com Simões de Almeida, o presidente do Sporting da altura. E foi-me dito que não o iriam fazer. Fiquei então com essa opção do futebol inglês em aberto. Segui para Inglaterra e só quando cheguei lá é que soube que era o Arsenal que me queria contratar. Obviamente não hesitei.
Boa Morte numa brincadeira com Emanuel Petit e Anelka para a televisão do Arsenal.
Como foi o primeiro dia, ao ver ao seu lado craques como Ian Wright, Patrick Vieira, Marc Overmars, Dennis Bergkamp, David Seaman, Anelka, Emanuel Petit...
No primeiro dia quando cheguei fui logo ter com o treinador, o Arsène Wenger. Fui apresentado aos meus colegas, tal como outros jogadores novos que entraram. Na altura não tinha muita conversa, porque o meu inglês não era bom. Depois fomos trabalhar. Mas fui muito bem recebido por todos os meus colegas. Era um mundo completamente novo. De repente, estava ali a treinar no meio daquelas estrelas todas que eu via jogar na televisão.
E Arsène Wenger? Como era ser treinado por ele?
É um treinador que admiro muito. Foi ele quem me deu a oportunidade de entrar no futebol inglês, na altura já um dos mais apetecíveis. Foi sempre uma pessoa que respeitei e admirei muito, por tudo o que fez e representou para mim.
Chegou a dizer que Wenger foi um segundo pai para si...
Sim, foi como segundo pai. Era um treinador que tinha também um lado humano. Preocupava-se com os jogadores, com o que se passava em campo e fora. Um grande treinador e um grande homem. Repare, o Wenger contratava muitos miúdos de 16, 17, 18 anos, muitos deles vinham do estrangeiro. E apoiava-os. Era todo um processo de integração. Muitos de nós tínhamos deixado as nossas famílias. E ele acompanhava-nos diariamente naquele processo de integração, porque os primeiros tempos são sempre mais complicados. Era um treinador que dava uma grande importância ao lado psicológico e emocional dos jogadores. E é assim que deve ser. Estava sempre interessado em saber se estávamos bem, sobretudo os mais novos que chegavam do exterior.
Hoje, como treinador, coloca em prática alguns ensinamentos que aprendeu com Wenger?
Sim, alguns. Sabe, todos os treinadores que eu tive ao longo da minha carreira foram importantes. Aprendi com todos e guardei ensinamentos de todos para poder aplicar agora que sou treinador. Só tive um treinador que faço questão de não colocar nada em prática do que aprendi com ele, o Glenn Hoddle, que me orientou no Southampton. Não foi correto comigo.
E amizades, fez muitas naqueles tempos do Arsenal? Aparecia em muitas fotografias ao lado de Ian Wright, até diziam que eram muito parecidos...
Sim, fiz grandes amizades com vários colegas do Arsenal. Ainda hoje falo com o Ian Wright com alguma regularidade. Também com o Patrick Vieira, o Anelka, o Robert Pires, apesar de não ser da minha geração. São pessoas com quem falo de vez em quando. O Arsenal foi sempre uma equipa à qual fiquei ligado, que me marcou bastante. Tal como o Sporting, por razões óbvias, logo à partida por ter feito grande parte da minha formação lá. São dois clubes que ficam ligados à minha carreira e à minha vida.
E brincadeiras? Recorda algum episódio em particular?
Ui, tive tantos... Mas há um de que me recordo sempre. Um dia troquei de passaporte com o Ian Wright e ninguém deu por nada. Tínhamos ido jogar à Ucrânia com o Dínamo de Kiev [em novembro de 1998, na Liga dos Campeões] e, quando regressámos a Londres, eu e o Ian Wright resolvemos trocar os passaportes. Entrei em Inglaterra com o passaporte dele e ele com o meu [risos]. Fizemos por pura brincadeira. Toda a gente, inclusivamente a imprensa, diziam que éramos muito parecidos. E pelos vistos era mesmo verdade [risos].
Fica no Arsenal duas épocas... depois passou por vários clubes ingleses, mas foi no Fulham que teve maior notoriedade...
Há os dois lados da moeda. O Arsenal é o clube que mais me liga ao futebol inglês. Fui o primeiro jogador português em Inglaterra a conseguir uma dobradinha, o campeonato e a Taça de Inglaterra, na época 1997-98. E ainda ganhei duas Supertaças. E foi o Arsenal que me proporcionou isso. É um emblema ao qual vou estar eternamente ligado. O Fulham foi talvez o clube onde me mostrei mais, também porque foi onde estive mais tempo, seis anos e meio... Cheguei a ser capitão de equipa. Começámos na II Liga, depois fomos campeões e subimos de divisão. Sendo emigrante e ser capitão de uma equipa da Premier League é algo que obviamente marca. Joguei também no Southampton e no West Ham. Mas o meu clube em Inglaterra é o Arsenal.
É verdade que num jogo pelo Fulham contra o Arsenal o Arsène Wenger lhe pediu a camisola no final?
Sim, é verdade. Depois do jogo pediu-me a camisola. Demonstra bem a boa relação que tínhamos. E que continuamos a ter. Ainda ontem (esta entrevista foi feita na terça-feira) lhe liguei a dar os parabéns pelos 69 anos. Vamos mantendo o nosso contacto, a nossa relação. E é assim que tem de ser. É a mesma coisa com o Sporting, apesar da mágoa de não ter jogador na primeira equipa.
Essa ligação ao Arsenal prosseguiu mesmo depois de terminar a carreira, quando se tornou olheiro do clube...
Sim, como observador internacional. Mas depois a ligação chegou ao fim. Mesmo depois de deixar de jogar tive ligações ao Sporting ([treinador dos juniores e adjunto da equipa B), depois com o Arsenal, como olheiro, e agora estou no Portimonense (treinador dos sub-23 desde o início da época). Alguém tem de trabalhar [risos].
A saída de Wenger surpreendeu-o? Foram 22 anos no Arsenal...
Apanhou-me de surpresa, mais pela forma como saiu. Custou-me vê-lo ir embora. Foi um treinador muito importante para o clube, conquistou títulos e criou uma filosofia muito própria. Foi uma pena ter saído.
E este novo Arsenal com Unai Emery, que o Sporting vai defrontar nesta quinta-feira. Vê grandes diferenças?
Eu vejo as coisas com a mentalidade inglesa. É cedo para falar. Temos de dar tempo ao Unai Emery para trabalhar. Chegou nesta época, perdeu os dois primeiros jogos, com o Chelsea e o Manchester City, mas agora está numa fase boa. Não perdem há dez jogos. Precisa de tempo e é preciso acreditar que vai fazer um bom trabalho.
Mas não vê diferenças?
É complicado falar sobre isso. É um novo treinador, que trouxe novas ideias, alguns jogadores são diferentes. Não é fácil ver já grandes diferenças e traçar um diagnóstico sobre o que está melhor ou pior em relação aos tempos do Arsène Wenger. O tempo o dirá.
E, para o jogo desta quinta-feira, vê o Sporting com capacidade para travar este Arsenal na Liga Europa?
O futebol vive de momentos. O Arsenal pode estar num dia sim ou não. O Sporting a mesma coisa. Todos os jogos começam com 0-0 e há 50% de hipóteses para cada lado. Às vezes as surpresas acontecem. Como digo sempre antes dos jogos, é 50/50.
Que conselhos daria a José Peseiro?
Ofensivamente o Arsenal é uma equipa muito forte. Tem vários jogadores que podem decidir jogos. Mas não preciso de dar conselhos a ninguém. Quem é que não conhece o poderio do Arsenal? É algo declarado, está à vista de todos. Toda a gente sabe que ofensivamente são uma máquina e que globalmente são uma equipa muito poderosa.
E nesta quinta-feira vai torcer por qual? Arsenal ou Sporting?
É daquelas perguntas que não devem fazer-se [risos]. Não vou responder por qual vou torcer.