Bô ca ta pensa nha cretcheu/ Nem bô ca ta imaginà
Sábado, 6 de Agosto
Está cá o Ávila, que eu quero conhecer há muito, e, regressados de férias, os Henriques fazem uma das suas festas retumbantes. Há convidados de vários os tipos - familiares e amigos, profissionais liberais, emigrantes e pessoas novas -, mas é como se constituíssemos todos um só corpo vivente, à medida da alegria dos anfitriões.
Do lado oposto da mesa, uma rapariga traz um colar com o nome, "Mariana", mas pô-lo ao contrário - para as selfies, imagino. À minha esquerda, uma senhora fala do Oklahoma, onde vive. Ao fundo, o Ávila bebe vinho. Nunca tomou uma bebedeira, mas está tão feliz que, se alguma vez o fizesse, talvez fosse hoje.
O Virgílio cozinhou o seu arroz de cherne e, como também é o meu cardiologista, como com gula e desafio. A Luísa guardou-me um tabuleiro de lapas, sabendo que eu ia chegar tarde. Há peixe grelhado e sobremesas infindas, e os sobrinhos do Henrique ainda trouxeram uma feijoada.
Almoçamos, lanchamos, jantamos e, enquanto a aguardente de Casegas opera o seu milagre, pomo-nos a ouvir o Óscar, com o seu violão:
Bô ca ta pensa nha cretcheu
Nem bô ca ta imaginà
C'ma longe di bô 'm tem sofrido
Conta-me a história de B. Leza, preso a uma cama do hospital, com a lua por única companhia, mas cantando ainda para a mulher que o deixara ao sabê-lo doente. É comovente, o conto, mas a dor de corno não deixa de ser um assunto recorrente, e eu concentro-me antes na história de Eugénio Tavares.
Praticamente inventou a morna, e nenhum outro tema, a não ser o amor, foi tão importante na sua obra como a emigração:
Hora di bai,
Hora di dor,
Ja'n q'ré
Pa el ca manchê!
Mas ainda assim, explica o Óscar, há uma declinação no seu percurso. A partida não foi o seu único olhar sobre a emigração: também compôs do regresso, segundo o princípio de que apenas partindo se pode voltar e apenas voltando se sabe quem se é.
Fico a pensar no tanto que temos em comum, açorianos e cabo-verdianos, e em como até chegámos a ser um só, quando os grandes navios baleeiros vinham recrutar rapazes às Western Islands. E fico a pensar também em como há tanto tempo a arte cabo-verdiana descobriu o regresso, quando aqui, em Portugal, só agora o intuímos.
Acabo ao portão, a conversar com o Ávila, e combinamos reencontro para a sua Lowell. Também ele volta, física e mentalmente, duas semanas por ano e todos os dias. Quero saber mais do regresso dele - do seu e do daqueles em seu redor.
Eu vou encontrar a palavra. E, não, não é saudade: saudade, como sôdade, é palavra da partida.
Quinta-feira, 11 de Agosto
São sete horas quando chego a Santa Maria, a bordo do Bombardier do costume, e o hotel só tem quarto às duas. Volto ao carro da moça da biblioteca e desço até Vila do Porto, à procura de um café onde trabalhar.
Vou dar a uma velha taberna, daquelas onde se bebem destilados ao pequeno-almoço e a password da internet está anotada num papel enodado. A TV berra a um canto, há uma espécie de goma sobre a fórmica, colando-se-me aos cotovelos, e três homens vão discutindo um assunto que não identifico, mas parece sério.
- Não, não, não... - insiste um, levando o Johnny Walker à boca. - Insolvência é outra coisa! Insolvência é outra coisa!
Tem uma história curiosa, Santa Maria. Rezou-se aqui missa para a tripulação de Colombo, mas o capitão não saiu da nau. Entretanto, estiveram cá os americanos. Sinatra cantou aqui, e ainda hoje passam na ilha, para reabastecimento dos seus aviõezinhos, chefes de Estado de todas as índoles, estrelas de cinema e músicos de topo, até futebolistas.
Diz-se que há dias parou aí Ronaldo, embora ninguém o tenha visto. Tom Cruise já parou há anos, mas Brad Pitt e Angelina Jolie não faz assim tanto. Nem sempre há fotos. Mas há de Clinton, agarrado a dois polícias de bigode, assim como há de Fidel, Chávez e democratas de igual estirpe, parando para desentorpecer as pernas.
Dava um romance, Santa Maria. Incluindo os barretes que foi enfiando após perder a base americana, no início da Guerra Fria, e que passou a enfiar em dobro com o fim da placa giratória. Houve a Estação Loran, houve a Zona Franca, até uma pista de aterragem para foguetões - todas nados-mortos, mas, apesar disso, a cada uma delas o povo esperançando-se.
É a ilha do sol, da areia branca e do Verão. Dizem que nem parece Açores. Por mim, atenho-me àquele homem que continua a repreender, com o terceiro uísque no copo:
- Não, não... Insolvência é outra coisa!
Há um tempo que passa por ele e é como se ele não se desse conta. Eis o homem sobre que escrevo há anos. Não podíamos estar noutro lado senão nos Açores: sempre perto da História - sempre na primeira fila, mas ainda assim na plateia.